DUAS HISTÓRIAS AMAZÔNICAS - LIVRO do Autor...
Por Marco Adolfs
DUAS
HISTÓRIAS
AMAZÔNICAS
A IGREJA
1850
Capítulo I
Logo a madeira da igreja começou a estalar, pegando fogo. Padre Joaquim e Manuel Flecha, por um momento, tentaram acalmar aquela gente. Mas foi em vão. O fogo começou a se espalhar por todos os cantos. Manuel Flecha tratava de salvar as crianças, enquanto o vigário afastava os homens e mulheres para fora da igreja. O clarão do incêndio tomava conta do lugar. Foi quando Manuel se deu conta de um detalhe e perguntou, apreensivo.
- Cadê a santinha, padre!?
- Meu Deus, ficou lá dentro! - respondeu o padre, com a cara de maior espanto.
- Vou lá tentar pegá-la! - disse Manuel.
- Você está louco!? - gritou o padre de volta.
- Vou sim! - respondeu o ajudante, saindo de lado.
O incêndio da velha Matriz sacudira aquela cidadezinha, tirando-a de sua letargia e morosidade naturais. No dia seguinte, parecia que toda a população do lugarejo acorrera ao local para ver de perto as ruínas e as cinzas ainda fumegantes da casa santa. Muitos choravam, outros rezavam e alguns viam naquele sinistro a possibilidade de novos planos.
No dia seguinte, feita a chamada dos senhores vereadores presentes, foi aberta então a sessão.
- Senhores! - começou então a falar o presidente da Câmara, abrindo a sessão -, esta reunião, extraordinária em todos os sentidos, é para resolvermos o que fazer em relação à terrível catástrofe que se abateu sobre a nossa igrejinha Matriz. Todos aqui já sabem que este sinistro deixou o nosso local de penitências totalmente em ruínas. Quase tudo foi perdido. Todos os paramentos do padre Joaquim e de seu ajudante, Manuel Flecha, o nosso professor e examinador das crianças da diocese, foram perdidos neste incêndio calamitoso. Mas faço um aparte para agradecer piamente à pessoa deste senhor Manuel Flecha que, fazendo jus ao seu nome, disparou para o interior da igreja envolta em chamas e ainda conseguiu salvar a nossa querida santinha, Nossa Senhora da Conceição, da língua do inferno diabólico. Palmas para o nosso herói! (palmas generalizadas) ... Senhores... Foi um milagre! Mas o momento agora é de extremo sacrifício de todos que aqui vivem. Temos que tomar providências imediatas. Acho que irão concordar com isso. Estou levando o relato, desse triste acontecimento, ao conhecimento do excelentíssimo senhor Presidente provincial, pedindo que solicite ao governo imperial a verba necessária para darmos início à construção DE UMA NOVA IGREJA MATRIZ EM NOSSA CIDADE! (aumentando o tom de voz) ... REVERTEREMOS TODO ESSE MAL COM A MAIOR DAS IGREJAS JÁ CONSTRUÍDA NESTAS PARAGENS! (berrou ainda o presidente da Câmara, finalizando seu discurso) ... O barulho de palmas e urros então foi ensurdecedor. Todos, naquela casa, levantaram-se em apupos sinceros e desesperados. Ninguém pensava ainda nas enormes dificuldades que enfrentariam para a construção de uma nova Matriz. Pois faltava dinheiro para quase tudo; a cidade caindo aos pedaços. O balanço da receita demonstrara, no ano que passara, uma arrecadação minguada de pouco mais que $ 2.593000 réis. As fábricas eram poucas e o comércio de exportação ainda inexistia. O que havia era uma indústria extrativa que alcançava apenas o roçado da mandioca-brava e o exercício da pesca. Principalmente da tartaruga. Como então construir uma catedral do tamanho que todos desejavam? Só podia ser loucura. Mas, por enquanto, sonhar era a única coisa possível. Pelo menos até que as coisas se ajeitassem melhor. Talvez, pensavam as autoridades, com a promulgação da Lei Imperial de elevação da Comarca do Alto Amazonas à categoria de província, programada para acontecer a 05 de setembro próximo, tudo mudaria. Inclusive com o aporte de mais verbas imperiais circulando pela região. Mas, o que ninguém sabia, era que a instalação definitiva e regulamentada da província só aconteceria dali a dois anos. Até lá a paciência de todos seria a virtude necessária a ser exercida como no compasso de uma lenta barcaça navegando e subindo o rio.
Capítulo II
Dois anos já haviam passado desde o incêndio que destruíra a velha igreja Matriz e a propalada obra majestosa da nova e grandiosa igreja, almejada pelo presidente da Câmara e por todos os moradores daquele lugar, sequer fora esboçada em papel. O povo da cidade da Barra, privado de assistir aos atos religiosos e às festividades a serem celebradas, não estava nada satisfeito em ter que se deslocar até a capela dos Remédios, situada num lugar ermo e perigoso. Ou por medo, ou por preguiça, quase ninguém ia até lá. Com a palavra de Deus em uma espécie de vácuo, o povo daquele vilarejo, perdido nos confins do mundo civilizado, havia descambado de vez para práticas esquisitas que substituíam a crença e o temor que padre Joaquim sempre conseguia incutir em suas mentes. Índios e escravos, os mais necessitados da fé, também imediatamente passaram a cultivar ainda mais o vício do álcool e o vício da concupiscência, vivendo como párias e devassos sem controle. E foi por esse tempo, de vazio e indefinições imperiais, que uma série de movimentos messiânicos eclodiu no alto Rio Negro - ou para ocupar o espaço político ainda indeterminado, ou para preencher o espaço geográfico incontrolável e repleto de miseráveis - e um líder religioso carismático apareceu na periferia do vilarejo. Um homem estranho, que se autodenominava Santo Cristo, o enviado de Deus. “Que viera para salvar a todos dos perigos e das trevas que rondavam aquela vila!”, proclamava bem alto.
Na verdade, Santo Cristo passou a almejar uma volta às origens puras e livres de todos esses indígenas que estavam sendo excluídos da natureza. “Um retorno ao paraíso”, pensava, “é o que eles precisam”.
Durante muito tempo aquele homem perambulou pela Cidade da Barra com suas prédicas e arregimentando um rebanho de elementos incultos e dispersos sem que ninguém o molestasse. Um novo messias a preencher o vazio de todos aqueles miseráveis e excluídos. Seu intuito era fazer aparecer um novo paraíso a ser explorado pela fé. E, para dar nascimento a tudo isso, já fazia algum tempo que Santo Cristo resolvera se estabelecer com seu ajuntamento de miseráveis - muitos sendo negros libertos e indígenas domesticados -, em um sítio na periferia da Vila da Barra, nas imediações da embocadura do rio Tarumã.
Mas enquanto essas coisas esquisitas aconteciam na periferia daquela vida imperial conturbada, João Batista de Figueiredo Tenreiro Aranha, o primeiro presidente de uma província ainda não de todo instalada, vinha tentando organizar-se nos parâmetros confusos e decadentes do lugar. Perante a nova situação administrativa da região, em janeiro daquele ano o presidente não tinha sequer onde se sentar. Problemas de toda ordem o acometiam. E agora, “ainda aparecia esse tal de Santo Cristo para perturbar o povo já por demais transtornado, daquela terra ignota”, pensava. Isso o irritava sobremaneira, chegando a tirar-lhe do sério. Mas João Batista de Figueiredo Tenreiro Aranha também era um homem prático e calculista, que sabia esperar o momento certo para atacar as dificuldades. Estatura mediana e rosto anguloso, lábios finos, cabeça grande e uma barba rala sempre por fazer. Carregando um olhar que transparecia, a qualquer um que se aproximasse, a firmeza de um caráter e de uma força adestradas pela vivência. João Batista nascera em Belém, filho de um poeta que o deixara órfão aos treze anos. Logo teve que trabalhar para sustentar a mãe viúva. Seu primeiro emprego foi de escrivão, a bordo de uma escuna. Mais tarde alistou-se em um Esquadrão de Cavalaria, subindo logo de posto.
- Excelência, se não tomarmos logo providências esse homem trará sérios problemas a todos nós - dizia o padre Joaquim. - Ele está fazendo o que bem entende - completou. Não devemos esquecer o que nos aconteceu há alguns anos.
- Sei muito bem de tudo isso - respondeu Tenreiro Aranha, chateado com aquela nova investida do vigário da cidade. - Mas por enquanto tenho que resolver outros problemas mais urgentes - fez observar. A cidade está precisando de uma organização interna mínima para podermos sair dessa situação que nos aflige.
- Mas senhor presidente - se me permite um aparte -, estão acontecendo coisas das mais tenebrosas nesse ajuntamento do tal Santo Cristo. Tenho escutado relatos tenebrosos sobre ele. É um perigoso elemento vindo de fora que pode prejudicar tanto a nossa santa igreja católica quanto o governo imperial de sua excelência. Estamos sem os trabalhos dos ofícios religiosos há dois anos, como o senhor bem sabe. E o povo precisa de arreios que freiem seus arroubos animalescos e de revolta. E esse sujeito, pelo que fiquei sabendo, está arregimentando parte dessa gente e deixando-os fazer o que bem entendem em seu sítio. O velho André contou que ele já está controlando um batalhão de indígenas e escravos fugidos, nas imediações do rio Tarumã. Sinto que estamos perdendo espaço para esse louco que se diz um santo.
- Sim, mas o que o senhor sugere que eu faça nas condições de penúria em que estamos!? - respondeu Tenreiro Aranha, contrariado com aquele problema. - Além disso, acho que ficarei por pouco tempo aqui - destacou. Acredito que se alguma coisa tiver que ser feita contra esse homem, esta não será por mim. Tenho assuntos mais importantes com os quais devo ocupar-me, padre. Se esse tal Santo Cristo está afastando os elementos vadios do centro da cidade, então por que complicar? Por enquanto é apenas hora de governar a província em suas finanças e manutenção.
- Excelência - retomou o padre -, segundo consta, esse homem está virando a cabeça de todos os indígenas e escravos da província e ...
- Padre! Escute bem o que vou lhe dizer - cortou Aranha. - A Província do Amazonas está apenas iniciando os seus dias de instalação - continuou. Antes de qualquer iniciativa militar tomar corpo é preciso existir um corpo militar. Minha preocupação maior está nas fronteiras. É um dos motivos para eu estar aqui. Preciso criar também uma secretaria geral, uma chefatura de polícia e implantar uma educação melhor nessa região. Agindo assim, podemos até evitar que o povo ignorante siga qualquer um que apareça nestas paragens com alguma ideia absurda.
- E o papel da igreja, onde é que fica? - perguntou o padre.
- Vou encontrar uma solução para reconstruirmos a Matriz - respondeu Aranha. - É isso que devemos fazer - afiançou em seguida. O seu rebanho, padre Joaquim, está momentaneamente disperso. Mas com muita calma amanhã estarei com uma nova ordem no sentido de resolvermos essa questão. Passe bem.
Tenreiro Aranha então despediu-se do padre.
Capítulo III
No dia seguinte o padre Joaquim ainda rolava na cama. Uma insônia terrível o assolara durante a noite e quase toda a madrugada. Nem a garrafa de vinho, tomada na solidão de seu quarto, havia sido suficiente para fazê-lo pegar no sono. O padre resolveu então sair e caminhar pela cidade, não só para curar a bebedeira, mas tentar esquecer todos os problemas locais. Tomou o rumo do mercado para conversar com os vendedores e, quem sabe, comprar alguma coisa para comer. Mas, assim que se aproximou do mercado, uma náusea enorme lhe atingiu a boca do estômago. Aqueles odores horríveis, exalados pelos alimentos expostos, deram-lhe ânsia de vômito. A visão daquelas tartarugas decepadas e abertas, das banhas fedorentas, espalhadas em enormes tachos, das carnes e peixes expostos e das verduras da Ribeira dos Comestíveis, parecia, a seus olhos, a visão das portas do inferno. Tonto e alquebrado, o padre desejava, desesperadamente, encontrar um lugar discreto e isolado, longe dos olhares alheios, onde pudesse despejar seu vômito que parecia estar na iminência de querer sair. O padre então resolveu contornar, correndo, a beira do rio, afastando-se da porcaria toda, indo na direção da antiga Olaria. Sabia que ali, naquela Olaria desativada há anos, encontraria a resolução dessa situação exasperante. Mas enquanto se deslocava até lá, a lama e mais as fezes dos urubus grudavam em suas sandálias, dificultando-lhe ainda mais a subida pelo íngreme morrinho e aumentando a sua náusea. Foi com muito custo que conseguiu galgar aquele terreno elevado e totalmente tomado pelo mato até atingir um ponto onde achou que poderia aliviar-se.
Chegando lá, suado e extremamente enjoado, o vigário olhou em volta e certificou-se rapidamente de que não havia uma viva alma naquele lugar. Achegou-se então a um canto e começou a vomitar. Quando aquele líquido amarelado começou a sair de seus intestinos, sentiu que ia morrer. Seu fígado parecia estar saindo com sua alma. Ao terminar, levantou a cabeça em direção aos céus e agradeceu ao bom Deus por aquilo terminar. Nesse momento, seus olhos divisaram, ao longe, o vulto do Presidente da Província, acenando-lhe da janela da casa presidencial. Sentiu vergonha por ser visto naquela situação vexatória e logo pelo Presidente da Província. Mas percebendo que Tenreiro Aranha parecia estar lhe chamando para ir ter com ele, acenou de volta. Ajeitando a batina, o padre então desceu por um caminho.
Quando o vice-presidente chegou ao gabinete de Tenreiro Aranha, o magno estava em companhia do vigário. Miranda percebeu de imediato que os semblantes daqueles dois homens se mostravam tensos e circunspectos. Pensou mais uma vez que não conseguia compreender a constante sisudez daquela gente do governo da Barra. Quase não sorriam, ao contrário dele. Só pensavam em negócios e mais negócios do reino. “Deviam aproveitar mais a vida”, pensava ainda, enquanto se aproximava.
- Bom dia! Presidente; vigário - cumprimentou Miranda, fazendo um pequeno gesto forçado de deferência em direção aos dois homens.
- Bom dia, senhor Miranda! - responderam os homens, quase simultaneamente.
- Vamos nos sentar, por favor, e tratar de um assunto que não pode ficar pendente - disse Tenreiro Aranha, olhando sério para Miranda. E continuou: - O assunto é a construção imediata de nossa nova igreja - começou a explicar o presidente. O padre aqui presente está apreensivo para que isso aconteça logo - completou.
Miranda coçou a cabeça, abaixou-a e olhando meio de lado, disse:
- Mas senhor presidente - se me permite um aparte -, é que o senhor sabe que não temos dinheiro para nenhuma obra a mais.
- Sim! Eu bem sei - concordou Tenreiro Aranha - Mas, nada nos impede de pensarmos nos primeiros traçados dessa igreja, não? - continuou. E, além disso, eu acho que podemos conseguir o dinheiro necessário para iniciá-la.
- E o local? - perguntou o padre. Onde será?
- Acho que posso dar uma sugestão - respondeu o presidente. - Hoje, pela manhã, quando cheguei ao meu gabinete e abri a janela, tive uma visão de onde deve ser localizada essa igreja - completou, sorrindo.
- E onde seria? - perguntou Miranda.
- Venham cá! - disse o presidente, levantando-se e puxando pelos dois homens na direção da janela do gabinete. - Olhem na direção daquela elevação - apontou. Estão vendo? Será no local exato onde se encontra a velha olaria abandonada. Que acham?
- Parece-me um bom local - concordou Miranda.
- E o senhor, padre? - perguntou o presidente, soltando um leve sorriso de ironia.
- É um bom local - concordou o padre, envergonhado pelo que fizera há pouco naquele bendito, e provavelmente, abençoado morro.
- Bom, mas para isso acontecer temos que encontrar uma forma de conseguir dinheiro - disse Tenreiro Aranha.
- Qual é a maneira? - perguntou Miranda.
- Estou considerando nomear uma comissão aqui na cidade para entrar em contato nas vilas e freguesias do interior, na promoção de subscrições de meios para que se possa, pelo menos, começar alguma coisa - explicou Aranha.
- E a paróquia dará todo apoio necessário - completou o padre, aceitando a proposta e se prontificando a ajudar.
- Olhe bem, senhor presidente - retomou Miranda -, as pessoas desses lugares estão passando por muitas dificuldades. Acho difícil conseguirmos alguma coisa - concluiu, meio pesaroso.
- Mas temos que pensar de forma especial e urgente, na construção dessa nova Matriz - observou o vigário, saindo em defesa da ideia. - A situação não anda nada boa; e sem a fé poderia ficar pior - continuou, em defesa de sua causa. Temos que iniciar, logo, as bases da igreja. Colocar indígenas e escravos trabalhando nisso. Pois os senhores bem o sabem que muitos, dessa gente pobre, estão debandando para o lado daquele homem que se diz santo. Para o povo inculto e miserável, esse Santo Cristo que apareceu está substituindo o papel da igreja. E o que é pior, é um louco devasso, pelo que sei. Se iniciarmos a...
- Esse homem me preocupa tanto quanto ao senhor, padre! - cortou o presidente.
Miranda abaixou a cabeça, também preocupado com o que acontecia na cidade. Todos tinham seus motivos para estarem incomodados com esse Santo Cristo. O padre pela perda de fiéis, o presidente pela perda da sua força representativa e do prestígio, e Miranda devido a suas cunhãs e escravas que poderiam querer fugir para os braços desse homem. Para ele isso seria um desastre maior do que qualquer outra coisa que porventura acontecesse na Vila da Barra.
- A importância da construção da nova igreja Matriz se prende a diversos motivos - continuou Aranha - Mas quero também lhes contar um segredo importante - ressaltou. Um segredo do Império que ninguém, além de nós três, deve saber. Ninguém mais, entenderam!?
Miranda e o padre ficaram momentaneamente perturbados e extremamente curiosos, pela forma como o presidente falou.
- E qual é esse segredo tão importante, excelência? - perguntou o padre, apreensivo.
- Estou tentando resolver esse problema também, mas com calma - começou a responder o presidente. - Vou lhes dizer. É que; bom, já faz algum tempo que coloquei um espião no meio desse povo que está debandando para o acampamento do tal Santo Cristo - revelou Tendeiro Aranha.
Miranda e o padre entreolharam-se surpresos.
- É um homem da minha confiança - continuou o presidente. - Ele deverá me manter informado sobre o que acontece no ajuntamento - completou. Esse homem já deve ter conquistado a amizade de Santo Cristo. Só posso dizer que é um comerciante que conheci há algum tempo. Ele está em uma posição chave na vida do acampamento. Virá, constantemente, comprar mantimentos aqui na cidade. Sairá e entrará, quando quiser, do acampamento de Santo Cristo. E trará muitas informações, compreendem?
- E esse homem já lhe disse alguma coisa? - perguntou Miranda, um pouco ressentido com o presidente por não ser informado antes sobre esse fato.
- A última informação que tive da parte dele foi que o fanatismo ao redor de Santo Cristo tem aumentado, a ponto de afirmarem que ele é o próprio filho de Deus; o próprio Cristo - completou o presidente.
- Isso é um absurdo! Uma blasfêmia! - rosnou o padre.
- Mas o perigo maior está no fato de que alguns desses fanáticos estão armados - observou de volta o presidente. - E são cerca de trezentas pessoas; entre homens, mulheres e crianças que estão vivendo lá - informou ainda.
- Acho que esse homem deveria ser capturado imediatamente e levado à presença da Corte, para evitarmos males maiores - alertou o padre.
- Desejo contornar esse assunto de forma pacífica - disse o presidente Tenreiro Aranha. - Foi por isso que não falei nada ainda para outras pessoas - observou. Temos que agir com inteligência e cautela, pois o povo não tem culpa. E para os senhores terem ideia das dificuldades de uma ação imediata, o nosso contingente de praças e guardas policiais, aqui na Barra, não chega a cinquenta homens. O corpo de trabalhadores é menor ainda. O coronel João Henriques enfrenta todo tipo de problema no treinamento. Estamos, com vagar, estruturando um batalhão de infantaria da Guarda Nacional. Começaremos as classificações. E tudo isso demanda tempo e dinheiro. Dinheiro para o fardamento, armas e alimentação. Não é possível, pelo menos por enquanto, isso tudo ser feito. Temos que esperar, trabalhando com essas informações que nos passam.
- Por isso tudo que eu também acho que essa obra da nossa nova igreja tem que começar, nem que seja apenas no traçado - ressaltou o padre, espertamente. - Temos que conseguir o dinheiro que falta ao governo e a força da fé no verdadeiro Cristo que falta a esse povo - continuou. Todos precisam ficar sabendo do que estamos fazendo. Precisam ver uma obra grandiosa, como tenho certeza de que será com essa igreja sendo erguida.
De repente, Tenreiro Aranha ficou pensativo e silencioso. Miranda e o padre ficaram olhando para ele à espera de mais palavras.
- Vou providenciar para que hoje mesmo essa planta da igreja seja executada; ou pelo menos esboçada - disse Tenreiro Aranha, cortando o silêncio.
- Por que não falas com o tenente-coronel Albino, do Comando Militar? - perguntou Miranda. - Ele gosta de desenhar - observou ainda.
- É nele mesmo que estou pensando - respondeu Aranha. - Mas agora tenho muito o que fazer - disse o presidente, despedindo-se dos dois homens. Farei o que for preciso. Peço apenas total discrição e silêncio sobre o que conversamos aqui. Até mais ver, senhores.
O tempo então passara um pouco mais no lugar da Barra, com Miranda insistindo, perante a câmara, em conseguir a construção da igreja com outras solicitações de fundos.
Já o Santo Cristo, logo após o seu almoço, saía da sua barraca indo na direção da enorme clareira aberta no centro do acampamento, todos os indígenas e negros de lá sabiam que deveriam acompanhá-lo. Uma verdadeira romaria de flagelados do governo imperial então começava a segui-lo em busca de um caminho que os livrasse daquela vida miserável que haviam vivido na vila. Buscavam um líder que se mostrasse um libertador. Buscavam um reencontro com o que haviam perdido de mais precioso. Buscavam as palavras que Santo Cristo emitia sempre que fazia seus sermões. As horas mágicas, quando o homem santo se transfigurava no próprio Cristo Salvador. Quando ele passava a todos o que Deus lhe havia dito durante seus transes.
- Escutem bem o que vou lhes dizer! – clamava ... - Deus! – continuava ... O nosso Deus! ... Falou-me um dia - em um de meus contatos diretos que sempre tenho com ele -, que não devemos temer esses homens do Império. Esses lá da Vila. Que apareceram para escravizá-los. Vocês são livres! ... Livres como aqueles pássaros nas árvores ... Esses homens do lado de lá nunca se deixaram penetrar pelo Espírito Santo que vive entre nós. O Espírito Santo que move o coração ... Eles acham que têm o poder ... Mentira! ... O poder é nosso ... Será sempre nosso ... Do povo ... Aleluia!? ...
- Aleluia! Aleluia! - gritou o povo de volta, em aprovação imediata ao que aquele Santo Cristo dissera.
- Nós não devemos temer nada! Estarei sempre à frente de vocês. Não acreditem em mais ninguém ... Esses padres ... Os padres ... Eles estão a serviço mais do Imperador do que de Deus ... Não é assim!? ... Eles só querem uma coisa na vida ... Escravizar a todos vocês para as suas realizações de domínio imperial ... Eles não amam a vida ... Só amam a si ... E tem mais ... Estaremos preparados para qualquer tentativa de nos amedrontarem com seus canhões ... Somos mais fortes ... Pegaremos nossas armas ... E a primeira das nossas armas é a cruz de Deus ... E é a vontade de Deus que eu liberte a todos ... Que o paraíso volte a existir ... Ao meu lado vocês não serão mais açoitados nem humilhados! ... Aleluia!? ...
- Aleluia, Santo Cristo! Aleluia, nosso santo homem! - gritavam todos em delírio.
Capítulo IV
A 1 de janeiro do ano de 1852 deu-se finalmente a instalação da Província de direito e de fato com uma celebração de graças na pequena capela do seminário. Na oportunidade, todas as autoridades presentes sentiram, como obrigação da defesa desta Província, debelar de imediato as forças contrárias que se configuravam no horizonte. Como a defesa contra esse messianismo perigoso daquele tal de Santo Cristo que aparecera na região. Mas nada foi possível fazer naquele espaço de tempo. E com o tempo passando um pouco mais naquelas paragens, um novo presidente provincial, como não poderia deixar de ser, foi indicado. Herculano Ferreira Pena, o tal novo presidente, era um político de muita influência e prestígio no Segundo Império. Mineiro de nascimento, sua experiência administrativa era incontestável. Fora presidente provincial do Espírito Santo, Mato Grosso, Pernambuco, Maranhão e Pará. Sua passagem por Pernambuco ficara na história e o fizera cair nas graças dos políticos da Corte. Lá, ajudara a derrotar, sem dó nem piedade, a Revolução Praieira, uma das inúmeras revoluções que haviam eclodido por todo o Império naquele período de incertezas após a independência. Empertigado como sempre, o mineiro, após ler o tal relatório, levantou-se de sua escrivaninha com o semblante severo e contraído, denotando a extrema preocupação pelo que acabara de saber. O presidente voltou-se para sua escrivaninha, pegou a sineta de chamada e, com um rápido e decidido movimento do badalo, solicitou a presença do guarda do palácio. Logo um militar barbudo assomou à porta.
- Pois não, excelência, o senhor chamou? - perguntou o barbudo com o olhar assustado. Acompanhavam-no dois soldados.
- Capitão! Mande chamar o senhor Miranda! - ordenou o presidente. - Quero conversar com ele sobre assuntos urgentes - concluiu, fazendo um gesto com a mão.
Os militares cruzaram os olhares, constrangidos, temerosos e não arredando os pés de onde se encontravam.
- O que foi, capitão!? Não escutou o que eu disse? - esbravejou o presidente.
- É que ...
- É que, o quê, capitão? Desembucha logo, homem! - rosnou o presidente, bastante contrariado com aqueles militares que pareciam não ter entendido direito.
- É que o senhor Miranda não gosta de ser incomodado depois que vai para sua casa - disse-lhe o capitão, timidamente.
- Como é!? - exclamou o presidente, não acreditando no que escutara saindo da boca daquele homem. - Temos muita coisa a fazer aqui e o senhor Miranda não pode ser incomodado!? - rosnou mais uma vez o novo presidente. Vá imediatamente atrás dele e diga-lhe que quero falar-lhe com urgência. Vá! Andem!
- Pois não, excelência! - disse o capitão, fazendo uma reverência e saindo de lado enquanto puxava pelo seu subordinado.
Ferreira Pena bufava de raiva com as orelhas vermelhas de sangue devido à preguiça e descaso que percebera, assim que chegara àquele vilarejo, ser quase uma condição de vida dos moradores do lugar. Parecia que aquele povo, a começar por alguns integrantes do poder, não fazia outra coisa além de ficar estendido naquelas redes absurdas, metade de um dia inteiro e entrando pela noite.
- Ô gente indolente! - exclamou o presidente antes da porta de seu gabinete fechar-se.
Enquanto isso, estendido preguiçosamente em uma rede após comer um pesado almoço, o vice-presidente Miranda bocejava tentando pegar no sono e tirar sua sesta vespertina diariamente. Aqueles ingredientes todos que comera, mais as canecas de vinho com canela que tomara, haviam-no deixado inebriado de uma preguiça enjoada. Foi quando escutou fortes batidas na porta de sua casa. Sobressaltado, levantou-se de um pulo e já empurrando Joana de lado. “Como alguém ousou vir incomodá-lo àquela hora em sua residência!?”, pensou Miranda quando se aproximou, bufando de raiva, da sacada de seu sobrado.
- Qual é, ô infeliz!? - rosnou. - E a estas horas!? - completou completamente enfezado.
- Capitão Bertoldo, da Guarda Palaciana, senhor! - respondeu uma voz lá de baixo.
- Você!? Como ousa interromper minha sesta, soldado!? - ralhou o vice-presidente, fitando a cara espantada do capitão da guarda.
- O presidente quer falar com sua excelência - justificou o soldado.
- Mas o que é? - perguntou Miranda, aquiescendo sua raiva.
- Não sei, mas é urgente, senhor! - falou-lhe a ordenança, empertigando-se.
- Vou vestir-me - respondeu Miranda, saindo da sacada. - Joana, onde está minha roupa? - gritou, esbaforido. Vá buscar já!... Merda de presidente!
Já na rua e ainda se arrumando, continuava a praguejar frases do tipo “essa merda de vida”; ou, “esse presidente inconveniente”. Mas ao virar a esquina de uma rua, Miranda esbarrou com o tipógrafo da Vila.
- Oh! Ah! Perdão, senhor Silva Ramos! - disse o vice-presidente, tentando se recompor.
- Aonde vais, homem, assim correndo e a esta hora!? - perguntou o tipógrafo, espantado.
- É que esse novo presidente insiste em reuniões e mais reuniões - respondeu o vice-presidente, contrariado.
- Mas deve ser alguma coisa de muito importante para tirá-lo de sua casa, não? - observou de volta Silva Ramos.
- Não sei.
- Bom, excelência, mas me mantenha informado de qualquer novidade, além das falas oficiais - disse Silva Ramos. - O povo da Barra precisa saber de maiores detalhes sobre o que pensa esse presidente vindo das Minas Gerais - completou o tipógrafo. E ele parece conhecer a fundo certos problemas de um governo provincial. Veremos o que acontece. À noitinha passarei em tua casa, Miranda. Pode ser?
- Sim, claro - respondeu prontamente o vice-presidente. - És meu amigo, antes de tudo - completou o gordo, sorrindo. Passar bem e até mais ver.
Nuvens escuras fechavam o clima da Barra, prenunciando um iminente temporal. Urubus cruzavam os céus em revoadas incertas na procura de abrigo. As canoas e escunas, atracadas no porto, balouçavam revoltas por sobre os banzeiros que encrespavam a superfície do rio. Quando o vice-presidente da província entrou no gabinete de Ferreira Pena, procurando demonstrar na face todo o seu descontentamento por ser incomodado àquela hora, o suor escorria em profusão pela gorda face. De costas voltadas para a entrada, Ferreira Pena observava o espetáculo selvagem da natureza revolta no horizonte, anunciando o temporal iminente. Mas quando escutou a porta de seu gabinete sendo fechada, voltou-se e viu Miranda de pé à sua frente e ainda enxugando todo o suor do rosto.
- Parece que vai cair uma chuva daquelas, não é meu caro Miranda? - disse o presidente. Sente-se, por favor - pediu, educadamente.
Miranda puxou uma enorme poltrona e aboletou sua imensa nádega. E com certo constrangimento, se queixou:
- Não gosto de sair de casa durante as tardes; ainda mais com esse tempo.
O presidente olhou fixamente nos seus olhos.
- Meu caro vice-presidente Miranda, eu compreendo toda essa sua disposição por aqui, neste lugar isolado e horroroso - disse. - Mas o senhor há de concordar que também temos muito o que fazer e não podemos perder tempo, não é verdade? - completou de imediato.
- Sim, sei - disse Miranda, tentando ajeitar melhor as gordas nádegas na estreita poltrona do gabinete.
- Portanto, meu caro - continuou o presidente - vou direto ao assunto. - Mas antes, quero lhe dizer que os nossos aliados depositaram em mim toda uma confiança para ajeitar esse panorama que se descortina para a Província do Amazonas - explicou. Eles querem ver isso aqui organizado e sem problemas que afetem o governo. O senhor sabe que desordens populares têm que ser contidas assim que apareçam e ...
- Presidente, me escute - cortou Miranda. - Para que isso aconteça, precisamos de dinheiro, militares e trabalhadores - ressaltou. E nada disso está sendo fácil de arranjar aqui na Barra.
O presidente balançou a cabeça e perguntou:
- Como está a edificação da nova Matriz?
- Nem mesmo a planta está definida - respondeu Miranda. - Faltam...
- Os homens do Imperador autorizaram a modificação na Lei Orçamentária desta província para que, de alguma forma, entre mais dinheiro para esta e outras obras - cortou Ferreira Pena, prometendo melhores dias. - E está para chegar da Corte um tenente-coronel que irá trabalhar exclusivamente na direção das obras públicas desta Província - continuou. Um homem acostumado a mexer com dinheiro e trabalhadores.
- E quem é a pessoa? - perguntou Miranda.
- O tenente-coronel Wilkens de Matos, um paraense de boa cepa - esclareceu Ferreira Pena, aparentando imensa satisfação.
- Tenho pena deste homem - comentou o vice-presidente.
- Por quê? - indagou Ferreira Pena, chateado e curioso por essa observação de seu vice-presidente.
- Vai ter que enfrentar muitas dificuldades pela frente - respondeu Miranda.
Herculano franziu a testa em sinal de preocupação. Miranda então lhe fez um relato completo sobre o que ele mesmo já sabia. Que existia a falta de dinheiro para as obras públicas necessárias não só para a vila, mas também para os municípios em geral. E a total falta de mão de obra especializada, desde pedreiros e carpinteiros, até serviçais.
Miranda sabia que os poucos que existiam trabalhavam em obras particulares. E que até os materiais para as obras e ferramentas também eram escassos. Pedras, madeiras e barro até que existiam ao natural, mas sofriam da falta de uma estrutura de beneficiamento de pedreiras, serrarias e olarias. Cal de mariscos e mais as telhas e tijolos eram comprados no Pará e aqui chegavam onerados em mais de cinquenta por cento devido aos fretes. Escravos e indígenas eram outro problema. Não existiam escravos para aluguel e os indígenas não gostavam de trabalhar. Além do fato de que muitos desses já haviam fugido para longe da cidade, voltando para o interior da selva. Todos os outros trabalhadores úteis que sobravam ou estavam envolvidos no comércio de venda de drogas e unguentos, ou no transporte e comércio de estivas, o que acabava por lhes fornecer um bom dinheiro imediato.
- E quanto àquela questão do homem que se diz santo? - perguntou o presidente.
- Ele anda arrebanhando mais ovelhas a cada dia que passa - respondeu Miranda. - Esse fato é mais um motivo para a falta de trabalhadores na cidade da Barra - continuou. “E as mulheres também andam desaparecendo da cidade”, pensou, pesaroso.
- O Tenreiro Aranha deixou-me um relato sobre esse fato - disse Ferreira Pena. - Deve ser a primeira ação de meu governo, prender esse falso Cristo e dispersar esse ajuntamento de escravos e indígenas que ele comanda - explicou. Não quero que isso cresça e tome vulto. Pode se tornar perigoso para a estabilidade do Império. Chega de confusão!
Miranda respirou aliviado, pensando em suas indígenas que bem poderiam a qualquer momento fugir para os braços desse Cristo de meia-tigela. Com esse novo presidente a evasão iria parar.
- E o que o senhor cogita fazer, meu caro presidente? - Miranda perguntou, satisfeito com essa atitude de Ferreira Pena.
- A primeira coisa a se fazer é procurar convencer esses fugitivos a voltarem para a Barra - respondeu. - E depois, prender esse alienado - completou. Entrarei em contato com o vigário geral no sentido de mandá-lo, à frente de uma comitiva do governo, para falar com essas pessoas e tentar trazê-las de volta. Acredito que o padre João, dizendo para essa gente que haverá trabalho para todos com a construção de uma nova igreja, consiga isso.
- E se não conseguir? - perguntou Miranda apreensivo.
- Aí serei obrigado a tomar providências severas - respondeu Ferreira Pena, franzindo a testa.
O vice-presidente Miranda resolveu sair do encontro com o presidente antes que a chuva torrencial chegasse à cidade. Despedira-se correndo e procurando chegar o mais rapidamente possível na tipografia de Silva Ramos. Encontrou-o de saída para sua casa e resolveram passar aquela noite, que se prenunciava tenebrosa, na taverna do velho Matos. Quando colocaram seus pés no boteco, a chuva desabou numa torrente estrondosa. O tal temporal amazônico que fez desaparecer o vilarejo sob um lençol branco de água e espuma. A tempestade era tão forte que as árvores, que circundavam o boteco, balançavam perigosamente seus ramos e troncos como se estivessem a ponto de cair. E o vento que zunia por entre as copas parecia compor um coro de anjos alucinados vindos diretamente do inferno.
O velho Matos recebeu os dois homens com certo alívio e muita satisfação. Primeiro por ter alguém ali com ele, já que vivia só, e segundo pelo fato de serem dois homens importantes da cidade e por virem movimentar o seu negócio em tal tempo de penúrias diversas. Velas e candeeiros espalhados pelas mesas e no balcão eram a única fonte de luz no interior do estabelecimento. Mas naquela noite de chuva e vento o velho Matos resolveu fechar seu boteco, assim que os dois homens ilustres da cidade entraram, desconfiando que ninguém mais se atreveria a sair de casa naquelas condições. Os gastos dos dois, compensariam.
- Senhores, sejam bem-vindos, entrem e bebam um bom vinho - disse o velho Matos. - A noite será longa e bem chuvosa - ressaltou. Mas tenho ótimos vinhos, queijos e chouriços.
- Obrigado, meu velho amigo - respondeu Miranda.
- E o senhor, “seu” Silva Ramos, o que deseja? - perguntou o dono do boteco.
- O de sempre já será ótimo - respondeu o tipógrafo.
Os dois homens então se sentaram, retiraram seus capotes e chapéus e esticaram suas pernas. Miranda retirou dois fumos de seu alforje e ofereceu um ao tipógrafo. Acenderam na vela da mesa e soltaram duas longas baforadas de puro e simples relaxamento. O velho Matos aproximou-se trazendo duas canecas e uma garrafa de vinho. Daquelas que ele só oferecia aos homens de posse da Vila.
- Querem algum queijo ou chouriço para acompanhar a bebida? - perguntou o dono da taverna.
- Sim, traga-me um chouriço em fatias - pediu Miranda - Bem, meu amigo, parece que o vinho será nosso companheiro esta noite - comentou o vice-presidente, voltando-se para o tipógrafo.
- E o vinho com uma boa conversa que teremos para passarmos o tempo - continuou Silva Ramos, rindo.
- Uma boa caneca de vinho, um fumo certeiro e...
- E uma bela mulher carinhosa - completou Miranda, adicionando.
Os dois riram.
- Bem, o que achas, meu caro vice-presidente, sobre os fatos que todos comentam pela Vila a respeito do que o novo presidente pensa e que ninguém sabe ao certo o que seja? - perguntou Silva Ramos.
- Bah! Pouco me importa o que ele pensa se não tem o dinheiro necessário para executar nada! - resmungou o vice. - Tu sabes que não podemos fazer muita coisa - salientou. Fiz-lhe um relatório completo sobre nossas dificuldades e ele pareceu nem escutar.
- E o que lhe dissestes, Miranda? - perguntou Silva Ramos, curioso.
- Tu bem sabes que as dificuldades nesta terra isolada do mundo são enormes - observou Miranda. - Disse-lhe apenas a verdade - continuou. Falta dinheiro, falta trabalhador e falta material. Mas o bom é que ele planeja combater esse louco que apareceu por estas bandas para nos perturbar.
- E quanto a esse homem santo, o tal Santo Cristo, em que pé anda essa situação que tanta transformação vem causando na Barra; o que falou o presidente, afinal? - resolveu perguntar, saindo de seus pensamentos.
- Tomaremos providências imediatas - respondeu o vice-presidente. - Para o nosso novo presidente, acostumado a debelar rebeliões, será uma das suas primeiras medidas como administrador daqui - explicou em seguida. E realmente tem que ser agora, antes que eu perca todos os meus serviçais para esse santo do diabo. Só precisamos de um corpo militar maior. E tu, o que tens realizado, Silva?
- Tu sabes, Miranda, que a minha vida é toda dedicada às letras - respondeu o tipógrafo, em meio a uma saraivada de relâmpagos. - Apesar do Cinco de setembro tomar todo o meu tempo, escrevo alguns poemas - revelou. Gostaria de ler mais, mas é difícil chegar bons livros aqui à Barra. Algumas encomendas que faço não chegam nunca; acho que se perdem pelo caminho. Mas leio e releio a Bíblia.
A noite chuvosa custava a passar para aqueles dois homens dispostos a conversas fiadas para passar o tempo. Havia muito o que falar naquelas circunstâncias. E a bebida, o fumo e os petiscos ajudavam muito nessas digressões escrachadas sobre a Barra.
Ao amanhecer, o vigário calçava as suas sandálias com um certo pesar, já sabendo que não iria adiantar muita coisa face aquele barro molhado da cidade e que teria que, necessariamente, limpá-las novamente. Como tinha sido chamado para um encontro, bem cedo, com o presidente Herculano e não sabendo do que se tratava, sua preocupação e ansiedade eram enormes.
Não muito longe, o vice-presidente chegava à sua casa embriagado. Tentava abrir a porta da entrada com uma certa dificuldade, face ao alto teor de alcoolismo conseguido bebericando na taverna do velho Matos. Quando finalmente conseguiu entrar, acordou a todos os que ainda dormiam com suas cantorias histriônicas e incompreensíveis; rindo de si e como se tudo pudesse fazer.
No dia seguinte, o presidente Herculano Ferreira Pena, um homem extremamente vaidoso e de boas maneiras; acostumado com as lides da corte, olhou o padre de cima a baixo e comentou.
- Acho que o senhor tomou um banho de lama, não?
O padre concordou, balançando a cabeça e soltando um sorriso amarelo.
- Bom dia, excelência - conseguiu falar.
Herculano sentiu todo um bafo de álcool barato vindo em sua direção. Respondeu ao bom dia do padre e deu-lhe imediatamente as costas, dirigindo-se para perto de uma janela.
- Hoje o dia não está bem - comentou o presidente. - A chuva desta noite deixou toda a cidade enlameada - completou, irônico. Aliás - continuou -, parece que todo mundo desta cidade vive entregue à preguiça e aos mais variados vícios humanos. E pelo que pude notar, quando chove, isso tudo se torna pior.
O padre não sabia onde colocar os olhos.
- O senhor há de compreender que a distância da corte, a pobreza e o abandono contribuem, e muito, para que isso aconteça - tentou justificar. - Mas ainda bem que existe a fé - completou, puxando para o seu lado.
- Nem tanto, padre - retorquiu Herculano. - É justamente sobre isso que quero falar - continuou. Há tempos que a religião não vem realizando a contento, nestas nossas províncias, o seu papel principal de apascentar as ovelhas. O povo está descrendo, cada vez mais, das palavras dos padres e se rebelando por qualquer motivo. Em momentos de mudanças - como os que estamos vivendo -, a igreja tem que desempenhar um papel mais incisivo sobre a população pobre. Não só educando as crianças, pois isso é fácil, mas organizando essas populações que querem se rebelar para podermos fazer um bom governo. Padres têm que dar bons exemplos e não ficar assustando o povo ignorante com ameaças. Esses negros e indígenas já foram por demais ameaçados e assustados durante o período colonial, o senhor não acha?
O padre estava atônito com aquelas palavras que escutava pela primeira vez. Uma crítica quase que direta e que ele tentava assimilar.
- Nos nossos sermões, se não incutirmos o temor a Deus e o castigo do inferno, aí é que eles se afastam, ou não escutam mais nada - explicou padre Joaquim. - E quanto à instrução pública dos nossos jovens, o senhor sabe das nossas enormes dificuldades para educar e ensinar esses alunos pobres e que ainda falam a língua geral - respondeu o padre. Além de tudo isso, o senhor já deve estar sabendo, que o ensino também está seriamente abalado pela falta de papel, compêndios, e até de tintas e penas. O seminário tem apenas seis alunos internos e cinco externos. Os professores, contratados para as cadeiras de Francês e Aritmética, estão com os salários atrasados faz algum tempo. Percebeu?
Herculano passou a mão pela cabeça em sinal de extrema preocupação. Sabia dos enormes problemas administrativos da região. Alguns com solução, outros nem tanto. Por um momento ele pensou que o padre talvez quisesse desviar o assunto. Mas, no fundo, sabia que ele talvez tivesse lá as suas razões. No momento o que lhe preocupava era o abandono geral da população. Parecia que naquela bendita vila inóspita, localizada nos confins do Império, uma enorme desesperança e falta de perspectivas havia tomado conta de todos. Mas em seus pensamentos recorrentes, duas coisas deveriam ser logo feitas para reverter esse quadro desolador. E quanto ao dinheiro para sanar os outros problemas, isso era apenas uma questão de tempo.
- O senhor tem que me ajudar, padre - disse então o presidente, desabafando. - Tenho que reverter todo esse quadro desesperador - continuou. Trazer de volta para a cidade esses trabalhadores que debandaram para os lados desse fanático. Politicamente esse homem é perigoso também. E temos que levantar logo essa nova igreja. Nem que sejam só as suas fundações. Os poderes do Império e da religião têm que se conjugar em uma só direção, o senhor não concorda?
O padre olhou para o semblante contraído daquele homem e percebeu que ele estava seriamente envolvido com os poderosos ao redor do imperador. Balançou então timidamente a cabeça, concordando com o que escutara. Mas pensou ainda sobre que tipo de ajuda poderia ele - um simples padre de província -, fornecer a este homem? No sentido de enfrentar esse líder ignorante e fanático que aparecera na região, e agora cercado por um povo desgarrado?
- Cogito mandar o senhor em uma missão religiosa e de convencimento ao acampamento desse Santo Cristo - disse o presidente, respondendo às suas dúvidas. - Mas, é claro que, atrás dessa missão que o senhor comandaria, eu destacaria alguns membros da Guarda Nacional - continuou. Se o senhor não conseguir demover esses fanáticos de suas ideias pervertidas, interviremos com a força necessária.
O padre ficou mais aliviado ao escutar aquelas palavras do presidente.
- Tudo bem, Excelência - concordou. - E quando partiremos? - perguntou em seguida.
- No próximo fim de semana - respondeu o presidente.
Capítulo V
O dia seguinte na Cidade da Barra, o presidente da província havia levantado cedo da cama e já tomava o seu desjejum: uma caneca de mingau de milho, acompanhada de algumas frutas. Homem de hábitos frugais e costumes severos, criado em uma fazenda das Minas Gerais, Ferreira Pena exigia de si e dos outros apenas uma coisa: trabalho com força e dedicação. E justamente naquela manhã, ele esperava a chegada de um barco vindo do Pará e que trazia um carregamento especial de armas e fardas. Armas para uma batalha sempre possível de acontecer naqueles tempos ainda tão conturbados; e fardas para vestir aqueles soldados maltrapilhos. Experiente e previdente ao extremo, Herculano desenvolvera como tática sempre se antecipar à resolução de problemas que pudessem advir durante sua administração. Ao saber que assumiria a presidência desta região, estudara todos os relatórios, exposições e falas do presidente Tenreiro Aranha. Procurava inteirar-se das dificuldades que poderia enfrentar. Para isso, também estava providenciando o desenrolar dos contratos de alguns trabalhadores. Eram carpinteiros, pedreiros e serventes portugueses para as obras que estavam paralisadas. Em sua mente, havia certa urgência para tudo. Sabedor que era, dos fatos ainda não solucionados, sua preocupação agora seria, assim que recebesse o armamento suplementar, solicitar da Corte o dinheiro necessário para cobrir as despesas que uma arrecadação de impostos insipiente não conseguia cobrir. “Mas isso viria também”, pensou mais uma vez. Ele percebera haver uma necessidade urgente em reestruturar a ordem militar naquela região, já que o Comando de Armas da Província estava a cargo de um militar um tanto relapso de nome Ignácio de Vasconcelos. Esse assumira uma armada que viera em substituição ao Comando Militar e que se encontrava quase que totalmente desmobilizado e sem homens suficientes para fazer frente sequer a qualquer pequena revolta popular. Quando assumiu a presidência, Herculano encontrou as forças que compunham a então guarnição da província, totalmente desorganizadas. O batalhão de infantaria incompleto; o fardamento dos soldados rasgados; armas sem a devida manutenção e muitos soldados abandonando seus postos para irem beber. Um decreto presidencial do ano anterior bem que tentara instituir na cidade um batalhão de infantaria convencional, para a Guarda Nacional. Mas, a iniciativa ainda não saíra do papel. E era a essa ação que Ferreira Pena daria logo início. Segundo cálculos que fizera em reunião recente com os comandantes militares, seria possível organizar o Batalhão de Infantaria desde que se começassem logo as classificações, com cerca de seis companhias de serviço ativo e de reserva. O que totalizaria mais de novecentos homens. E todos devidamente armados e disciplinados. Mas para que isso acontecesse, seria necessário primeiro disciplinar o próprio Ignácio, que naquele momento, coincidentemente, estava posicionado bem a seu lado. Fazê-lo entender direitinho, o que ele, Herculano Ferreira Pena, esperava de um comandante militar da Cidade da Barra.
- O senhor está vendo, comandante, o esforço do Governo Imperial no sentido de organizar um forte corpo militar na Barra e em toda a região!? - observou Herculano, tentando chamar-lhe a atenção para a chegada do material bélico.
- Isso é muito importante, excelência; muito importante - balbuciou o embasbacado militar. - Essas armas todas; novinhas, meu Deus! - comentou ainda, maravilhado.
- Porém, mais importante do que as armas que estamos recebendo, comandante - continuou o presidente, com a boca contraindo-se de satisfação por estar desabafando tudo aquilo -, são os homens da guarnição. - O que lhes falta na Barra, comandante, é mais seriedade e disciplina - ressaltou, aborrecido. Em todos os sentidos. Esse vilarejo está entregue à preguiça e à inoperância.
O militar engoliu a seco o que escutou. Mas balançou a cabeça em sinal de concordância. Entre desconfiado e sem saber o que dizer, seus olhinhos miúdos tentavam desviar-se do olhar severo do Presidente da Província. “Esse presidente de merda vai querer fazer o quê?”, pensou.
- No meu governo, eu não vou admitir a continuação dessas indisciplinas e dessas arruaças que imperam na Guarda Nacional! - salientou Ferreira Pena, com o rosto apresentando sinais de contrariedade e de um furor progressivo e disciplinador. São inconcebíveis as coisas continuarem do jeito que estão, “seu” Ignácio. Não admitirei!
- Pois não, excelência! - exclamou o militar, concordando.
- Tempos de novas lutas podem aparecer a qualquer momento e temos que estar preparados! - salientou o presidente.
- Sim, claro, excelência! - concordava o militar.
- Mas olhe, comandante ... Ali, no horizonte! ... À esquerda - apontou o presidente, excitado, chamando-lhe a atenção. - O valor esperado percebe? ... As Armas! ... Finalmente estão chegando! - exclamou o presidente, satisfeitíssimo.
Para os lados da presidência o comandante Ignácio já era orientado pelo presidente no sentido da distribuição das armas que haviam sido despachadas do vapor e que estavam, nesse momento, colocadas em duas enormes carroças pertencentes à armada da Guarda Nacional.
- Faça chegar essas armas ao quartel e distribua aos soldados de prontidão, comandante Ignácio! - ordenou o presidente, o semblante mais aliviado. - Para tomarem gosto pela novidade - completou, rindo. E aproveite o final da tarde para que todos se perfilem, com as fardas e o armamento novo, no pátio do quartel. Eu, o vice-presidente e alguns vereadores estaremos por lá para passarmos uma revista em todos. E é preciso que isso chegue aos ouvidos de todos os habitantes da cidade e da região. Estamos preocupados com a melhoria de nossas unidades militares espalhadas por essa região, e isso tem que ser visto e sabido. Na oportunidade, efetuarei um breve discurso de exortação ao dever e à disciplina. Até mais ver, meu caro!
- Pois não, excelência! Farei o que pede - respondeu, todo solícito, o militar.
- Mas por enquanto cubra essas carroças para o trajeto! - ordenou o presidente, preocupado com os olhares fortuitos dos moradores abelhudos de sempre.
- Sim, excelência.
- Quero tudo organizado para o meu discurso! - exclamou o presidente, os olhos brilhando de contentamento e autoridade. Vou despachar agora - completou. Agradeço.
Após a chegada das armas, aquela manhã da Barra transcorreu amena e sem maiores atropelos. Seus habitantes - caboclos, indígenas e brancos estrangeiros -, circulavam quase indiferentes ao que se passava ao redor. E quando o meio-dia chegou, um silêncio pareceu baixar nas redondezas da Ribeira das Naus. O fluxo de pessoas arrefecera como num passe de mágica e a ociosidade e a lerdeza penetraram em todos os recônditos da Vila. Mercadores ambulantes é que, ocasionalmente, quebravam aquele silêncio com seus gritos alardeando produtos. Em algumas bancas, ou nos poucos botecos e tascas abertos, moradores desocupados bebiam seus destilados ou jogavam algum jogo de azar para passar o tempo. Em armazéns localizados na parte leste da frente da cidade, homens com enormes bigodes cultivados arrumavam inúmeras sacas e tonéis. Nesses locais, para onde quer que se voltasse o olhar, viam-se moscas e sujeiras. Trabalhadores, em mangas de camisas e chinelos, postavam-se às portas desses comércios, na expectativa vaga de uma possível venda. A Cidade da Barra, àquela hora, pouco depois do meio-dia, dormitava em uma sesta provisória, embalada, talvez, por sonhos ainda não realizados ou digestões apimentadas mal resolvidas.
Mas logo tudo mudou. À medida que ia entardecendo, a cidade da Barra ia adquirindo um aspecto triste e melancólico. Sob as bênçãos do Imperador, suas ruas não pareciam ruas; suas casas não pareciam casas; e seus habitantes, muitos deles, não sabiam o que estavam fazendo ali. O céu sangrento de fim de tarde era o cenário final para as suas esperas e frustrações.
Em uma sala do Palácio da Presidência, Herculano Ferreira Pena e Miranda conversavam, tentando passar aquele tempo que parecia não passar.
- Hoje à tarde, após a revista das tropas - que já estarão com as suas armas novas, diga-se de passagem -, comunicarei, em discurso, a decisão de acabar, garantidamente, com o ajuntamento de fugitivos ao redor desse Santo Cristo - disse Ferreira Pena, decidido.
- Decisão muito acertada, presidente! - concordou Miranda. - Mas iremos atacar de imediato? - perguntou, indeciso.
- Não! - exclamou Herculano. - Vou primeiro mandar, até lá, uma missão de paz sob a direção de nosso vigário geral - explicou. O padre Joaquim e alguns poucos da guarnição, sem armas à vista, irão à frente. E atrás, seguirá, é claro, sempre de perto e guardando certa distância, uma pequena força armada. Para não assustar o demônio. O objetivo é tentar convencer o povo a voltar para a cidade. Se tudo der certo, tudo bem, senão, apelaremos para a força.
Na hora marcada, o pátio da casa que servia de quartel da Guarda Nacional da Cidade da Barra estava um burburinho só. Soldados, já com as suas fardas e armas novas, conversavam e riam muito, alheios à melancolia da cidade lá fora. Alegres como crianças que acabassem de receber presentes ou balas de confeitos. Aquelas fardas novas, mais do que as armas, eram especiais para eles, simples soldados maltrapilhos que haviam sido. Os pés descalços e as roupas puídas ou rasgadas. E, além disso, em um mundo esquecido como aquele, tudo isso era um sinal de que o Imperador não existia apenas como uma ideia de soberano distante e vago, e sim como alguém que pensava neles. Fora isso que o coronel Ignácio dissera, quando lhes entregara as fardas e os armamentos. Era nisso que eles também acreditavam. O próprio coronel Ignácio sentia-se abestalhado, com sua farda e espada nova. Aquele agrupamento de soldados barbudos e desdentados transformara-se, realmente, em um bando de crianças que se refestelavam com os brinquedos que haviam ganhado. Mal sabiam eles o que lhes aconteceria em breve.
- Vamos até o quartel, Miranda! - ordenou o presidente, em determinada hora. - Quero chegar um pouco antes - explicou. Mais uma hora e começará a escurecer.
O vice-presidente se levantou imediatamente de uma poltrona onde havia se aboletado muito a contragosto e, sentindo-se ainda mole e indigesto, caminhou logo em direção à porta do gabinete, “se fosse por ele, não faria revista alguma e tiraria uma bela sesta”, pensava.
- Mas antes tome isso aqui e leia - disse Ferreira Pena, estendendo-lhe uma folha com um texto redigido em impecável caligrafia. - É o meu plano de governo - começou a explicar. O que planejo fazer aqui, neste lugar. Quero que todo mundo nesta cidade fique sabendo. Mandarei publicar no “Estrela do Amazonas”, ainda amanhã. Leia com atenção.
Miranda pegou o texto do presidente e começou a ler. Leu todo o documento e não acreditou no que estava escrito ali. Para ele, as expectativas eram absurdas e impossíveis de serem cumpridas. Pelo menos naquele momento tão caótico daquela cidade.
- Está bom, excelência! - respondeu Miranda, entregando-lhe de volta o documento. Miranda já sabia que era inútil contrariar o presidente. Além de politicamente inaceitável, ele não era burro. Ou pelo menos pensava que não fosse. Seu objetivo, como presidente, era perpetuar-se no poder, e não contrariar, jamais, as ideias de exploração do império.
- Vamos então!? - disse Miranda, querendo que aquilo tudo começasse e terminasse logo. Afinal, o quartel ficava a duas quadras abaixo de onde se encontravam.
- Vamos sim - respondeu-lhe o presidente, pegando uma capa de representação e a espada. Estava vestido de modo impecável para a solenidade no quartel.
Quando estavam se aproximando do quartel, o corneteiro dera o toque de reunir e a tropa agora se perfilava toda garbosa, em prontidão, na espera do presidente e de seu vice, que já apareciam na curva do terreno próximo à entrada. O comandante Inácio estava tão compenetrado em seu posto, que não movia uma pestana. Quem naquele momento olhasse para aquele agrupamento de soldados, antes tão maltrapilhos e abandonados, veria um verdadeiro batalhão em formação.
Capítulo VI
Quando Ferreira Pena e o vice-presidente entraram no pequeno quartel, logo viram todos aqueles homens perfilados e não deixaram de sentir uma ponta de orgulho pela Guarda Nacional do Imperador. Se o próprio Imperador estivesse presente, pensou o presidente, não deixaria de sentir o mesmo.
- ATENÇÃO, SOLDADOS! - gritou o coronel Ignácio, assim que viu ambas as autoridades adentrando o pátio. - VIVAS AO IMPERADOR! - gritou, ainda.
- VIVA O IMPERADOR! VIVA O IMPERADOR! - gritou de volta a soldadesca.
Ferreira Pena e Miranda subiram no pequeno estrado onde se encontrava o coronel, cumprimentaram-no e se perfilaram também.
- O NOSSO PRESIDENTE IRÁ FAZER UM DISCURSO EM NOME DO IMPERADOR! - gritou novamente o comandante Ignácio.
Ferreira Pena fez um pequeno gesto com a cabeça e tomou a frente. Levantou os braços e começou a falar.
- Soldados imperiais! ... A minha presença aqui se prende a um fato muito importante ... Solicitei ao comandante Ignácio este encontro, sabendo da satisfação de todos por estarem recebendo as armas e as fardas novas... Pois é chegada a hora da mudança necessária e final para esta Província! ... O Imperador precisa de todos nós em prontidão ... Temos que defender o nosso país, que ainda sofre com investidas de diversos aventureiros ... Não podemos mais aceitar qualquer tipo de baderna em nosso território! ... Os homens do Império criaram o comando das armas da Província; e, as de primeira linha de guarnição são vocês ... O primeiro batalhão de infantaria, com sua artilharia a pé de caçadores! ... Vocês e a flotilha de guerra, com a nossa canhoneira e nossas duas chalanas, formamos a defesa e a capacidade ofensiva da Província ... E para que tudo funcione, espero disciplina acima de tudo... Não quero mais ver soldados embriagados e dados a safadezas ... Para finalizar, cortem esses cabelos e aparem essas barbichas ... As armas do Império devem ...
Durante a noite daquele dia, relaxadamente na varanda de sua casa, o presidente Ferreira Pena conversava com o tenente-coronel Wilkens de Matos, um engenheiro militar recém-chegado à cidade. A conversa versava sobre os problemas que ambos teriam que enfrentar, para resolver a questão das obras públicas paralisadas. O presidente falava acerca dos pormenores e das dificuldades.
A noite na Cidade da Barra estava amena, com um céu repleto de estrelas. Ocasionalmente, uma brisa insidiosa vinha da direção do imenso rio e agitava as folhas das inúmeras árvores ali perto, causando um barulho de um fremir portentoso. Por alguns momentos, o farfalhar uníssono e de quase encantamento das folhas balouçadas silenciava os sapos e grilos que disputavam suas vidas entre matagais e riachos ao redor. Em um canto, a favor do vento, um fogareiro espalhava um pouco de fumaça para espantar os mosquitos. Ao longe, no meio da escuridão, luzes de lamparinas a óleo de tartaruga tremeluziam, demonstrando que ali havia uma choupana com vida em seu interior. Ainda era cedo na cidade; a noite apenas começara. Vez ou outra, um mugido, um relincho e vozes invisíveis rasgavam o ar de solidão e distanciamento que parecia perpassar todos os que ali viviam. O rolo de fumaça dos fumos dos dois homens subia lento e melancólico, como que a compor esse quadro todo de relaxamento espacial de um vilarejo distante e esquecido. Alguns escravos e serviçais, que trabalhavam na casa do presidente, esticavam-se preguiçosamente ao redor, à espera de alguma ordem ou serviço, ou simplesmente tentando bisbilhotar e entender alguma coisa do que era conversado.
As noites na Barra eram levadas, assim, modorrentas, úmidas e ociosas. O único movimento que havia parecia ser o de bocas ansiosas por contar o que se esperava de um tempo e espaço tão dilatados.
- O senhor irá enfrentar sérios problemas para administrar esta vila - disse Ferreira Pena.
Wilkens de Matos ajeitou-se um pouco mais na cadeira. Em seu semblante, liam-se as linhas de um homem determinado e ansioso por resolver qualquer problema. Perguntou então, curioso:
- Como assim?
- A construção da nova Matriz! - começou a explicar o presidente. - Embora eu tenha recebido do governo imperial uma quantia auxiliar de seis mil réis para dar início à obra, não posso fazer nada - alertou. A planta que começou a ser idealizada ainda não tem um traçado definitivo sobre o qual se possa fazer sequer as fundações. Eu gostaria, tenente, que o senhor desse uma olhada nela.
Wilkens balançou a cabeça, concordando com o presidente.
- Mas o mais grave - continuava o presidente -, é a extrema e crônica falta de material para se começar qualquer prédio público. - Não se tem um pedaço sequer de sernambi, e mesmo telhas suficientes - explicou. E os...
- Desculpe interrompê-lo, excelência - levantou o braço Wilkens de Matos -, mas eu também fiquei sabendo da falta de pedreiros e carpinteiros na cidade. É isso mesmo?
- É! Temos pouca mão de obra qualificada - respondeu Herculano.
- E quanto ao preço de telhas e tijolos, o senhor já fez um levantamento? - indagou o tenente, sabendo de antemão que esse era um dado muito importante a ser considerado para a construção de obras de vulto.
- O alqueire de clã de mariscos, que vem todo do Pará, custa cerca de quarenta e cinco réis - disse. - Adicione a esse valor mais cinquenta por cento de frete e verás, meu caro tenente, o quanto irá gastar-se - ironizou. E os escravos e indígenas, meu amigo, que fariam todo o trabalho pesado, simplesmente sumiram da vila. Não querem mais trabalhar de jeito nenhum. Estão envolvidos com crenças novas e revoltados ao extremo.
Wilkens puxou um pouco de fumo e tomou um trago da bebida oferecida pelo presidente. Sentia, em profundidade, os problemas enormes daquele vilarejo inexpressivo. Por um momento, pensou que talvez estivesse no lugar errado. Resolveu então retomar a conversa, procurando fazer uma projeção.
- De quantas obras esse vilarejo precisa, excelência? - perguntou então.
- Olha, meu caro, deixa só eu lhe enumerar as principais obras de que esta vila precisa para ser chamada de cidade - disse o presidente, ajeitando-se na sua cadeira. - Temos, primeiramente, a Matriz - como lhe falei antes - e depois o edifício da Assembleia Provincial - que também é urgente -; a própria Câmara Municipal; e um novo quartel, com hospital anexo para as tropas imperiais.
- É muita obra! - observou Wilkens de Matos.
- É sim; mas são necessárias - retorquiu o presidente. - Este vilarejo está uma calamidade - continuou. Precisamos de organização e desenvolvimento. O Brasil precisa, em todos os lugares, de uma presença e de uma representação digna da igreja e do Império. Isto aqui parece mais uma aldeia perdida na selva. O senhor já viu os casebres da cidade? E os prédios públicos, ridículos e provisórios, que usamos? Temos que transformar esse lugar. É a nossa missão, tenente.
- Evidentemente, excelência - concordou Wilkens de Matos.
Nesse momento daquela prazerosa noite, o padre apareceu, vindo da noite escura lá fora.
- Entre, padre! Chamei o senhor até minha casa para lhe dizer que é chegada a hora de resolvermos o assunto do tal movimento messiânico que esse Santo Cristo deflagrou - disse em seguida.
- Estou pronto, excelência - respondeu o padre, já sabendo que não podia se ver livre daquele dissabor.
- A missão sairá depois de amanhã - continuou explicando o presidente -; pois que já ordenei tudo. - Será uma expedição de boa vontade e convencimento, com o senhor liderando - fez questão de salientar.
O padre franziu o rosto.
- Precisarei de certa segurança, excelência - observou.
- Já providenciei isso também - respondeu o presidente. - O senhor irá acompanhado, secretamente, de alguns soldados da guarnição - explicou. Quatro deles irão como civis, ao seu lado. Mais atrás, a dada distância, uma guarda completa de oito militares, armados com mosquetes devidamente escondidos, estarão prontos para qualquer eventualidade.
- Espero que tudo se resolva na santa paz do senhor - disse o padre entre esperançoso e em dúvida.
- Mas o senhor não acha que esses doze militares são poucos? - completou temeroso.
- Não podemos ser muito acintosos para não despertarmos as suspeitas e a raiva dessa gente - observou o presidente. - O senhor, padre, é quem irá fazer o serviço, pacificamente, tentando convencer esses escravos e indígenas fujões a voltarem para a vila - disse, revelando o aspecto apaziguador da abordagem.
- E se não quiserem voltar? - perguntou o padre.
- Aí teremos de usar a força das armas para o convencimento - disse Ferreira Pena, cerrando o punho. - Não permitirei que isso continue - finalizou raivoso.
Padre Joaquim ficou em silêncio. Em seu íntimo era a favor da paz, mas achava que “aqueles selvagens deveriam voltar à civilização”, garantidamente. Afinal, a cidade estava parada por falta daquela gente que havia fugido seguindo esse homem alcunhado de Santo Cristo. E tais acontecimentos, que atingiam visceralmente a religião e a educação, tornavam ainda mais insuportável o lugar. “Onde já se viu um fanático enfrentando o poder secular da Igreja”, pensou o vigário, desenvolvendo uma raiva íntima. O padre ainda tinha vívidas, em sua memória, as imagens da revolta popular que se originara na Província do Pará e arrastara-se ao longo dos rios até dar as botas na Barra. Fora horrível. E se acontecesse novamente? E se essa gente toda resolvesse sair do interior da selva, na calada da noite, e afligisse as pessoas decentes da vila? O vigário nem queria mais pensar nessas coisas acontecendo em sua paróquia.
Distante dali alguns quilômetros uma fumaça negra subia ao céu, vinda de uma fogueira acesa no centro da clareira do acampamento de Santo Cristo.
- Veja, Maria - resolveu falar, chamando a atenção da companheira que seguia ao seu lado -, eles estão felizes com a minha vinda e existência, e por eu lhes haver proporcionado aquilo que nunca tiveram nas vilas e cidades onde viveram. Aqui podem vislumbrar o paraíso na Terra. Percebes? Um dia, minha Maria, todos serão iguais em todos os aspectos. O que quero para eles é não apenas esta vida alegre e livre de qualquer imposição, mas igualdade de condições para existirem como seres humanos.
Maria Santa balançava a cabeça, concordando com tudo.
- Você está vendo aquelas crianças ali? - continuava Santo Cristo enquanto apontava o dedo na direção de um grupelho de curumins que brincava ao redor. - Elas terão um futuro em uma cidade que Deus haverá de nos dar um dia - completou, orgulhoso. Uma cidade tão repleta de justiça divina que será então chamada de Cidade de Deus. Um lugar onde os homens repartirão o pão e a vida exemplar de Jesus. E este dia - de uma cidade só de justos - está próximo.
Dito isso, Santo Cristo abraçou Maria Santa e deu-lhe um beijo na testa. Maria Santa devolveu-lhe o carinho com um sorriso meigo e aconchegou-se mais em seus braços. Sentia-se protegida desde o momento em que aquele homem determinado e carinhoso lhe aparecera na vida. Nunca esquecera o que lhe fizera, quando a retirou da vida que levava em uma determinada cidade, quase mendicante e servindo seu corpo a diversos homens, que apareciam na casa onde vivia com outras mulheres. Naquele dia, Santo Cristo olhou-a direto nos olhos e disse apenas para vir com ele. Sair daquele lugar e segui-lo, que ela não iria se arrepender nunca mais. Os olhos enigmáticos e fortes daquele homem convenceram-na de imediato. E ela realmente nunca se arrependera de tê-lo seguido. Um homem, ora silencioso, ora com rompantes de pregador com palavras bonitas, que dizia elas serem ordenadas pelo próprio Deus. Pensando ainda em tudo isso, Maria desviou o olhar de seu amado na direção da sua barriga. Grávida de sete meses, sentiu que ali estava parte de uma dádiva maravilhosa. Santo Cristo respirou fundo, abraçou-a ainda mais e sentiu que estava finalmente realizando tudo que mais almejara para aquela gente; para aquela mulher que sofrera tanto e para seu filho que iria nascer.
- Senhor Santo Cristo! - gritou uma voz masculina, retirando-o de seus devaneios.
Santo Cristo virou-se e viu a face alegre e bonachona de Santo Padre se aproximando por trás de uma inclinação de terreno. Vinha puxando um burrico carregado com dois enormes fardos.
- Com licença, Maria - disse Santo Cristo. Preciso falar a sós com Santo Padre.
Santo Cristo então fez um sinal para que Santo Padre o esperasse onde estava e se afastou do grupo para ir falar com o seu braço direito.
- Então finalmente chegaram! - exclamou Santo Cristo, cumprimentando Santo Padre.
- Seu presente de aniversário - disse Santo Padre, sorrindo.
- Quantas têm aí?
- Só foi possível conseguir apenas dez armas, Santo Cristo - respondeu Santo Padre, repentinamente ficando sério.
- Poucas, não? Mas, enfim, é alguma coisa. E ele, onde está?
- Teve que voltar para a cidade - respondeu Santo Padre. - Tinha que resolver um problema familiar qualquer - explicou.
- Será que é confiável? - perguntou Santo Cristo, se referindo ao seu espião e contato na cidade.
- Jamais nos prejudicaria - respondeu Santo Padre. - O homem tem raiva do governo da Barra, desde muito tempo atrás - completou. Parece que foi até preso uma vez. E ele está nos ajudando muito.
- Mas vamos ficar de olho - disse Santo Cristo, desconfiado. - Um homem que consegue armas novas, assim, é sempre muito perigoso - continuou. Agora, esconda essas armas em uma barraca. Tem munição suficiente?
- Tem sim.
Caminhando pelo Largo da Imperatriz, após atravessar a ponte dos Remédios, vinha um padre Joaquim pensativo, com a preocupação em ultimar os preparativos da saída da tal “missão diplomática” do governo provincial em direção ao acampamento de Santo Cristo. Seriam dois dias de caminhada exaustiva e dificultosa por algumas picadas irregulares, no meio da selva fechada e inóspita. Segundo o mapa que o espião do reino entregara, ainda durante o governo anterior, o trajeto era extenso, com passagens por igarapés e cachoeiras. O padre sabia que deveria levar o mínimo possível para sentir-se bem. Físico delicado, tinha ainda que arrumar em seu embornal uma manta e mais algumas batas que o protegeriam do frio intenso da selva. Um crucifixo; um caderno de apontamentos e a Bíblia completariam a defesa. Quanto à alimentação e a proteção física, receberia diretamente dos soldados da Guarda Nacional que o acompanhariam nesse périplo. O padre tinha certa pressa em arrumar aquilo tudo e sair logo, pois, segundo ordens expressas do presidente, ele deveria dormir esta noite na casa da guarda do quartel para, ainda na madrugada do dia seguinte, deixar a cidade sem despertar suspeitas. Para os empregados da casa paroquial, o padre dissera, como desculpa, que estava de viagem marcada para ir visitar uma comunidade no outro lado do rio.
No meio da madrugada os portões do quartel foram então abertos. Envolvidos por uma neblina espessa e um sepulcral silêncio, começou a sair de lá de dentro um grupo de mais ou menos quinze pessoas. Na frente, puxando dois burricos carregados com o que talvez fosse uma tralha de mantimentos, vinha um dos soldados que estavam à paisana. Logo atrás desse soldado, estavam o padre e outro militar em trajes civis. Mais atrás vinha o restante do grupo. Suas armas, escondidas. Todos haviam recebido ordem de não soltarem um pio sequer antes de saírem dos limites da cidade. No portão aberto um vulto se destacava segurando a bainha de sua espada. Era o comandante Inácio que, por obrigações de comando, tivera de ficar. No comando daquela missão ia um jovem alferes bonachão, de nome Viriato. Inexperiente, mas muito corajoso e destemido, Viriato liderava o posicionamento de todo o grupo que se arrastava lento e preguiçosamente pelo centro da cidade. Naquelas horas, a não ser por uns bêbados caídos na frente de alguns botecos, ou nas imediações da Ribeira das Naus, não havia uma viva alma em toda a cidade da Barra. Até os cães não soltaram um latido sequer, encolhidos que estavam devido à forte neblina e umidade insidiosa. Logo aquela missão, esdrúxula e meio que fantasmagórica, contornou uma curva elevada de um terreno e desapareceu pelo Largo da Pólvora. Ainda andariam por um pouco de picada aberta, até atingirem os limites da cidade. Quando então o enfrentamento seria o da selva inóspita e dificultosa.
Bastante distanciados, já embrenhados no interior da selva, o vigário e os soldados tentavam, com uma enorme dificuldade, ultrapassar um trecho de difícil acesso. Seguindo o mapa feito, procuravam atingir uma trilha já formada no interior da selva, para poderem seguir adiante. Todos esperando que, dentro de mais algumas horas, o trajeto passaria a ser facilitado pela proximidade de um pequeno braço de rio que serpenteava rente à selva. Um leito de rio, com pouca profundidade, por onde os homens e o burrico que carregava os mantimentos, poderiam caminhar mais desembaraçados e livres da selva. Seria um trecho mais aberto, que tinha como inconveniente apenas algumas cachoeirinhas, com um pouco de pedras à flor d’água. Mais adiante, havia uma picada que alguns mateiros e caçadores haviam feito anteriormente e que serviria como um caminho a ser seguido até o destino.
Padre Joaquim pingava de suor, mas não reclamava. Havia agora certa determinação de sua parte em resolver logo tudo aquilo. Suas dúvidas eram então dissipadas a cada passo dado. Em seu íntimo brotara a esperança de que toda essa refrega iria acabar bem. Que, assim que os negros e indígenas os vissem, logo seriam convencidos de que haveria trabalho e mais dignidade para todos na Cidade da Barra. A ideia que o padre tinha era a de divulgar a reconstrução imediata da igreja como uma espécie de redenção para aquele povo miserável. Joaquim deu então uma parada na caminhada, enxugou o suor de seu rosto e vislumbrou toda uma nova era de prosperidade para a cidade. Em seu sonho, viu escravos, indígenas e brancos trabalhando como irmãos na construção da nova igreja. A casa de Deus levantando-se das cinzas. Com duas torres e a majestosa nave central com inúmeros arcos. E aquelas portas imensas sendo finalmente abertas para receber os fiéis. A casa de Pedro, pintada de branco e amarelo; reluzindo de frente para o Rio Negro. O vigário chegara até a esboçá-la em um desenho tosco. Desejava apenas que a sua igreja ficasse no topo de uma colina alta e voltada para o Oriente. Pois o padre sabia, mais do que ninguém, que todas as grandes igrejas construídas, principalmente no velho continente, tinham as suas absides viradas para sudeste e a fachada para noroeste. O objetivo dessa consecução era fazer com que os fiéis, ao entrarem no templo pelo lado ocidental, caminhassem em direção ao local onde o sol se ergue, o Oriente estaria voltado para a Palestina, berço do Cristianismo. A direção da luz. Padre Joaquim pensava então em tudo isso, enquanto caminhava.
Capítulo VII
Enquanto a missão pacificadora do presidente Ferreira Pena seguia em frente, no acampamento de Santo Cristo a história era outra. Orientados por Santo Padre e outro homem, alguns negros e indígenas aprendiam a manejar os mosquetões contrabandeados. Todos se preparando para uma luta em defesa da liberdade. E, como Santo Cristo também era um homem prático, seu povo procurava, além das rezas, outro tipo de ajuda.
- Mirem bem; e, por Santo Cristo, atirem! - gritava Santo Padre, orientando os cerca de dez escravos e indígenas a manejarem aquelas armas. - Quanto a vocês - ordenou, virando-se para um grupo de homens a um canto -, tratem de fazer o maior número possível de arcos, flechas e bordunas.
Maria Santa, sentada ao lado de Santo Cristo, não compreendia o porquê de tudo aquilo acontecendo no acampamento. “De uma hora para outra, as coisas haviam mudado”, pensava. O acampamento, antes tão cheio de paz, estava totalmente revolto com toda aquela movimentação que mais parecia a preparação para uma guerra do que de uma ordem divina. Para Maria Santa, havia muita coisa de ruim pairando no ar.
- Para o quê tudo isso, meu Santo Cristo? - resolveu perguntar.
Santo Cristo desviou o olhar para ela e lhe respondeu:
- Um dos nossos homens ficou sabendo, já faz algum tempo, que o governo da Vila está tramando um ataque ao nosso acampamento. - Esse homem tem um irmão morando e trabalhando na casa do novo presidente da província - explicava. Essa pessoa escutou quando o presidente ordenou, recentemente, que um grupo de militares se deslocasse para nos debelar. Parece que já estão a caminho.
- Mas não seria melhor fugir? - perguntou Maria Santa, tentando impor uma ideia diferente para tudo aquilo que presenciava.
- Ainda não – respondeu Santo Cristo. - Vamos enfrentá-los primeiro - disse ainda, impaciente. Eles irão perceber a nossa determinação. É chegada a hora de deixarmos as orações de lado e lutarmos pela nossa causa. Somos os verdadeiros soldados de Cristo. Eles representam apenas o reino dos homens.
Maria Santa começou a lacrimejar. Santo Cristo conteve o seu ímpeto e a abraçou em seguida, procurando consolá-la.
- Não chores, minha Maria - sussurrou. - Se não fizermos isso, não sairemos nunca deste lugar - tentou explicar. Você confia em mim?
Maria Santa tremia de medo. Mas balançou a cabeça, concordando com o seu homem e líder de todos.
- Mas pelo nosso filho que vai nascer, nada de ruim deve acontecer, meu Santo - disse, quase suplicante.
- É pelo nosso filho que faço tudo isso - explicou Santo Cristo. - É por todas essas crianças que você vê aqui - continuou. É para que pessoas como você, e todos esses negros libertos e indígenas respeitados, tenham um futuro sem fome e sem correntes que os aprisionem. Veja bem. Olhe em volta. É só lutar. Não haverá vitória sem luta. Um dia, Maria, toda essa nossa luta que agora irá começar, estará escrita em um panteão dourado; postado em alguma parede de uma cidade luminosa e cheia do ouro da vida. Sinos lembrarão não as missas desses que nos oprimem, mas de todos os santos que nos protegem a partir desta natureza que estamos vivendo. Não tenhas medo. Jesus não disse um dia que os pobres de espírito, os fracos e os oprimidos herdariam a terra? Tive um sonho, minha Maria. Sonhei que todos seriam livres. Mas, para isso acontecer, teremos que lutar contra os homens desse Império.
Maria Santa tentou se acalmar. Ela sentia a força que aquele homem tinha. Santo Cristo sabia como convencer qualquer um. Sua voz, seus olhos e seus gestos convergiam para isso acontecer sempre. Era o seu dom divino. A força enigmática de todos os líderes e homens santos impregnando o ar por onde quer que passassem; para onde quer que olhassem. Talvez Maria o amasse tanto que estivesse cega. Talvez o amasse muito, que só via a luz que emanava de seus olhos. Pensou então que talvez ele tivesse razão. Não há vitória sem luta. E o lugar que ele lhe prometera - aquela cidade de luz em plena selva e com todos vivendo em paz e em harmonia -, existira como uma promessa a ser realizada com muita luta. Só tinha medo de que algo de ruim acontecesse com ele e com o filho que iria nascer.
- Agora vamos até aquela cachoeira nos banhar - disse Santo Cristo, sorrindo e lhe puxando pelos braços. - Tire toda a sua roupa e esqueça que o mundo existe - completou. A água deve estar maravilhosa.
Miranda acordou ao sentir um odor forte lhe penetrando as narinas. Aspirou-o profundamente e ficou matutando o que Joana estaria lhe preparando agora. Começou então a revirar-se na cama, de um lado para o outro. De repente, sentiu que alguma coisa especial acontecia. Sua tristeza havia ido embora. Suas narinas começaram a dilatar-se e uma sensação de bem-estar inundou o seu corpo. Foi quando uma indígena entrou no quarto, trazendo uma tigela fumegante nas mãos.
- Olhe o que “éu fiz prô sinhô” - disse, toda sorridente.
Miranda levantou-se de um pulo e achegou-se mais para perto de Joana, para ver melhor o que ela lhe trazia.
- Que é isso? - perguntou, arregalando os olhos assim que viu aquela sopa de coloração avermelhada.
- É um preparado que fará o “sinhô” se animar.
Miranda aproximou-se e cheirou.
- Tem cheiro de doce - observou. - Tem mel, aí? - perguntou.
- Tem melaço ê umas raízes - disse a indígena. Pode tomar sem “médo, dotô”.
- E essa cor vermelha? O que é?
- É o segredo.
- Tem certeza de que vai funcionar? - perguntou um vice-presidente descrente e temeroso.
- O “sinhô” terá uma enorme vontade de viver - respondeu-lhe Joana, sorrindo maliciosamente.
Miranda olhou bem para os seus olhos, pegou a tigela e começou a tomar aquela infusão. Miranda tomava e soprava; tomava e soprava. Até que terminou. O suor escorrendo em profusão pela face. As pernas tremendo e a língua amortecida. Miranda deitou-se e ficou esperando ansiosamente pelo que lhe poderia acontecer. Tomou aquela infusão como uma última esperança de vida. Agora era só esperar. Em seu íntimo, pensou que não tinha nada a perder. Queria um resultado positivo para a sua vida a qualquer custo, depois do que lhe acontecera.
No final daquela tarde, longe dali e envolvidos por um crepúsculo de nuvens vermelhas, padre Joaquim e mais os militares, exaustos pela caminhada, resolveram descansar. Haviam encontrado uma clareira e despejaram suas tralhas ali mesmo. Amarrado o burrico, trataram então, sob as ordens do jovem alferes Viriato, de arranjarem lenha para a fogueira que tencionavam fazer.
- Bem, padre - começou a falar o alferes -, passaremos a noite aqui e amanhã retomaremos a caminhada. - Acredito, pelo que vi no mapa, que entraremos no acampamento desse Santo Cristo pelo meio da tarde, antes do sol cair - finalizou, olhando para o esboço desenhado servindo de mapa de localização.
- Sim, espero - disse o vigário, enquanto se sentava em um pedaço de tronco apodrecido e sentindo a umidade ao redor.
Uma pequena fogueira foi acesa pelos militares visando afastar não só o frio da noite na selva, mas também os animais perigosos. Padre Joaquim, para se confortar melhor, retirou a Bíblia de seu embornal e começou a ler uma passagem. Em seu íntimo começava a desconfiar de que aquela missão talvez não terminasse bem.
- Que pensas tu, meu caro, dessa nossa missão? - perguntou, virando-se para o alferes Viriato.
- Bem; posso apenas lhe dizer que estou pronto para qualquer eventualidade - respondeu-lhe o militar.
- Tomara que eu consiga convencê-los a voltar - disse o padre, pensativo.
- Amanhã teremos a certeza de tudo - respondeu-lhe Viriato.
Enquanto na selva aqueles homens carregavam suas incertezas, já instalado em seu abrigo, Santo Cristo meditava. Maria Santa, deitada a seu lado, dormia calmamente. A chama de um pavio, que emanava de um candeeiro, bruxuleava ao sabor de uma brisa fria, que penetrava naquele pequeno cubículo tosco, feito de troncos e folhas de palmeiras. Era ali que Santo Cristo e Maria Santa dormiam. Fora ali que o filho dos dois fora gerado. Faltava pouco tempo para a criança nascer e isso também preocupava a Santo Cristo. Em suas crenças, imaginava aquela criança como sendo especial. Concebera isso ainda em sua mente. Um ser divino que viria através dele e de Maria. Em seus pensamentos, passavam imagens delirantes de um futuro melhor. Em caso de ataque - pensava Santo Cristo -, ele sairia em direção ao lugarejo de Santa Isabel, a poucos quilômetros dali. Já havia previsto que, a partir daquele povoado, ele construiria a sua cidade luminosa. Invadiria e tomaria conta do povoado, e faria dele sua trincheira de onde emergiria a realização de seu sonho. Ele, Santo Cristo, comandaria um verdadeiro exército de crentes na liberdade. Era só uma questão de tempo para unir todo o povo miserável e oprimido. Os Corpos de Trabalhadores, que viviam ao longo daquele imenso rio, o seguiriam, sim. Afinal, ele era o novo Messias. O enviado de Deus. Tiros e flechas agora seriam a sua reza. Estava só esperando a chegada da força imperial para tomar uma posição mais firme e decidida nesse sentido.
Já na floresta, sentado perto do fogo, padre Joaquim lia Mateus em seu versículo quatro. Mas de repente, ele parou de ler, devido a uma súbita dúvida atroz lhe assolando a alma. “Suas palavras serviriam realmente para convencer essa gente a voltar? O que dizer para convencê-los a deixar a liberdade em troca da escravidão? Ou semiescravidão? E o que o fizera aceitar aquela missão?” Talvez a sua hipocrisia, cultivada no seio do Império, fosse a resposta? De qualquer forma, tinha que continuar a sua representação. “Uma questão de sobrevivência e em desejar ver aquela Matriz finalmente erigida”, pensou, confortando-se um pouco.
Aquela noite passou rápido para todos, caçadores e caças. Logo estava amanhecendo no ajuntamento de Santo Cristo. Envolvidos com o trinar das centenas de pássaros, nas árvores ao redor, alguns de seu povo saíam de suas barracas para banharem-se no igarapé que corria próximo. Outros, menos corajosos, procuravam apenas se alimentar preguiçosamente. No interior silencioso das inúmeras barracas, indígenas robustas e alegres amamentavam suas crianças pequenas. Restos das fogueiras, acesas durante a noite anterior, ainda fumegavam em pontos daquele acampamento, encorpando ainda mais uma neblina matinal espessa, que levitava ao redor. Santo Cristo, que não dormira durante toda a noite, envolvido que se encontrava com seus pensamentos de grandeza e liberdade, levantou-se preguiçosamente. Deixando Maria Santa ainda descansando, resolveu dar uma volta pelo acampamento. Quando saiu, percebeu que alguns negros estavam postados, carregando os seus fuzis, embaixo de uma árvore. “Pareciam estar preparados”, pensou Santo Cristo. Os indígenas circulavam rindo e confiantes, sabedores do usufruto integral daquela liberdade. Santo Cristo sentiu-se seguro em sua liderança. As coisas pareciam caminhar com certa tranquilidade. Ao aproximar-se do igarapé ficou absorto, escutando aquela água toda que escorria aos borbotões, despejada de uma pequena queda, mais acima do ponto onde se encontrava. Uma paz interior o envolveu completamente.
Não muito distante dali, em seu trecho da floresta, padre Joaquim e os militares também já haviam acordado. Um dos militares esquentava um mingau numa pequena fogueira, com a impaciência de todos que esticando suas canecas, ansiavam por beberem logo daquela bebida quente. Outro militar aproximou-se distribuindo umas broas, que eram mastigadas com sofreguidão. O frio havia despertado a fome e a vontade de retomarem logo a caminhada. Mas todos sabiam que aquela friagem seria apenas por poucos minutos, já que o sol, que ainda se escondia tímido por entre as folhas das altas árvores, prometia esquentar bastante naquele dia. Padre Joaquim, em seu canto, comeu a sua broa bem devagar e olhando o semblante de cada um daqueles militares do vilarejo. Todos guardavam um silêncio que talvez fosse de medo e apreensão pelo que poderia acontecer dali para frente.
- Todo o cuidado daqui para frente será pouco, homens! - rosnou, repentinamente, o comandante Viriato, enquanto todos recebiam a sua porção do mingau e ainda comiam as suas broas. - Podemos enfrentar certa hostilidade por parte desse Santo Cristo - completou, cauteloso. Como vocês já sabem, o padre irá com os nossos que estão sem farda. E vocês irão comigo guardando cinquenta metros de distância do primeiro grupo. Estaremos na retaguarda dando cobertura para o padre e em alerta para qualquer eventualidade. Entenderam? Quando estivermos nos aproximando do acampamento dos revoltosos, coloquem-se em alerta no sentido de pegarem as armas. Mas esperem pela minha ordem. Está correto?
Todos concordaram.
- Ótimo! Agora vamos nos arrumar e partir - ordenou o militar. - A trilha localizada no mapa margeia o rio e isso facilitará se tivermos sede - completou. Cuidado com os fuzis e as espadas. Não deixem transparecer. E puxem o burrico. E o coitado deve beber mais água, antes de partirmos.
Padre Joaquim não pôde deixar de admirar aquele jovem comandante dando as ordens necessárias. Por um momento a sua desconfiança daquela missão, comandada por um jovem da Guarda Nacional da Província, pareceu se dissipar. Sentiu firmeza naquele mancebo mal saído da puberdade e tão firme e decidido em seu comando. Talvez as coisas não fossem tão complicadas quanto pareciam, pensou.
Enquanto isso, a paz no acampamento de Santo Cristo foi quebrada pela voz áspera e grosseira do Santo Padre, chamando-lhe a atenção. O homem está afogueado.
- Santo Cristo! Santo Cristo!
- Hein, homem!? O que é?
- Um dos indígenas quer falar com o senhor - disse um Santo Padre esbaforido.
- O que é, afinal? - perguntou Santo Cristo.
- Não sei direito - tentava explicar Santo Padre. - Ele só quer falar com vossa santidade - completou. Parece que viu alguma coisa na floresta.
- Manda vir até aqui comigo - ordenou Santo Cristo.
- Vou buscá-lo agora mesmo - disse Santo Padre, saindo de lado.
Não demorou muito e o indígena apareceu na frente de Santo Cristo. Gesticulando muito e parecendo meio assustado. O indígena então falou:
- “Éu tava” caçando aqui perto quando vi homens da cidade vindo pelo rio! - falou.
- Como!? - perguntou Santo Cristo, interessando-se ainda mais pelo que escutara. - E quantos eram? Como eles estavam vestidos? Estão a que distância daqui? - indagou, apreensivo e desconfiado.
- São pouco mais que os dedos das mãos - respondeu o indígena. - “Tavam” com armas na mão - disse. E vestidos de fardas azuis! E tinha uns que parecia gente que vive no povo. E um animal carregava muita coisa. Não estão longe.
- Meu Deus! - exclamou Santo Cristo. - Vão nos atacar? - perguntou incrédulo, com essa possibilidade e virando-se para Santo Padre. Mas são tão poucos. Não estou entendendo?
- Talvez tenham vindo conversar - disse Santo Padre.
- Mas, armados!? - observou Santo Cristo. - Isso não está me cheirando bem - completou.
- O que o senhor quer que a gente faça?
- Mande os homens do ajuntamento ficarem em alerta. - disse Santo Cristo. -Vamos sair daqui para o interior da floresta - ordenou. Eles devem entrar no acampamento pela trilha. Distribua os homens armados ao redor e vamos esperá-los em silêncio. Darei a ordem de ataque ao levantar o cajado.
E foi o que todos fizeram, a esconderem-se na mata ao redor.
Com o sol a pino, a missão aproximava-se do ajuntamento dos foragidos. O jovem comandante Viriato, embora extenuado pela caminhada, não parava de conversar com o vigário. Desejava saber de mais pormenores sobre Santo Cristo.
- Mas padre, é verdade que esse homem faz mesmo milagres como estão dizendo lá na Vila?
- Não; isso é muita mentira! - respondeu o padre. - O que esse homem faz é aliciar trabalhadores e incentivar escravos a fugirem - continuou. O que ele quer é apenas liderar uma revolta contra a santa igreja católica e o imperador.
- Às vezes fico pensando, padre, em como essa situação toda vai ser resolvida. – disse o comandante. - O senhor acha que ele vai recuar? - perguntou Viriato, indeciso. Esse homem está com muita gente ao redor dele. Não vai se entregar nunca.
- Não penso em ele se entregar - observou de volta o padre. - Penso em convencer alguns trabalhadores e escravos a voltarem conosco - completou. E o mais rápido possível. É isso que tentarei conseguir.
- Tomara que dê certo, pois se ele reagir com agressividade vou ser obrigado a mandar meus homens atirarem.
Ao dizer isso, o jovem comandante da Guarda Nacional levantou o braço e parou a todos.
- Alto! Atenção! É chegada a hora de nos dividirmos em dois grupos. Estamos nos aproximando do acampamento dos fugitivos e só o padre e mais os dois homens que o acompanham devem entrar no local. Cercaremos o acampamento. Quatro homens do lado esquerdo e quatro homens do lado direito. Se houver alguma irregularidade, invadiremos o acampamento atirando em quem aparecer na frente. Agora vamos logo nos posicionar. Padre!
- Sim.
- Siga em frente.
O ajuntamento estava deserto quando o padre, acompanhado dos dois militares em trajes civis, começou a se aproximar. Não havia uma viva alma sequer. Apenas uma fumaça insidiosa saindo dos restos de uma fogueira, demonstrava que ali houvera alguma atividade humana. As barracas e taperas mal construídas estavam abandonadas. Havia também um enorme silêncio impregnando o ar. Algo de muito estranho acontecera com aquele povo. “Onde estavam todos?”, pensou o vigário, já preocupado.
- Ô!? Onde estão todos!? Viemos em paz! - gritou o padre.
De repente as folhagens, no extremo oposto de onde o padre se encontrava, começaram a balançar. Foi quando, de dentro daquele verde espesso, saiu Santo Cristo e seu povo. Os olhos de padre Joaquim e dos dois homens se assustaram com a quantidade de gente que saía daquele trecho da floresta. Homens armados, mulheres silenciosas e crianças maltrapilhas. Mas todos como que dominados por aquele líder carismático que assomava à frente do grupo. Um homem alto e forte; com uma bata gasta e segurando um cajado com uma cruz de madeira encimada. A figura mística de um verdadeiro santo na terra. E, pior, cercado de homens armados de fuzis, flechas e bordunas. Se houvesse alguma resistência, ou uma precipitação dos homens da guarda, haveria um verdadeiro banho de sangue.
Os homens de Santo Cristo abriram o cerco e se espalharam por todo o terreno. Chegavam às centenas. O padre quase não acreditava que aquele homem, que se dizia santo, pudesse ter atraído tanta gente para as suas ideias. Sentia que teria dificuldades em convencer toda aquela gente a vir com ele. Talvez fosse até impossível, dada à animosidade que sentia no ar.
- O senhor é que é o Santo Cristo? - perguntou o vigário, aproximando-se um pouco mais daquele líder da selva.
Santo Cristo fez um sinal com a mão para que parasse onde estava e balançou a cabeça confirmando. O olhar de uma ferocidade concentrada.
- Venho em paz e apenas conversar - disse o vigário, sentindo-se um pouco intimidado e inseguro.
- Mas estamos em paz, aqui! - respondeu Santo Cristo, com ironia e raiva conjugadas.
Padre Joaquim ficou calado. Naquele momento não sabia mais o que dizer.
- Diga logo o que o senhor deseja, ou se retire daqui com os seus homens! - rosnou um Santo Cristo impaciente.
- Falarei logo - respondeu o padre, nervoso. - Venho em nome do governo da Província do Amazonas tentar uma negociação como o senhor para que alguns desses homens e mulheres, que fugiram da cidade, voltem para trabalhar - disse. - Tem muito trabalho para todos, na cidade. O governo provincial construirá uma enorme igreja e precisa de gente para erguer suas paredes. Essas crianças precisam de escola. E as mulheres de uma casa onde possam viver.
- Trabalho escravo e miserável, com certeza - retorquiu Santo Cristo. - É isso o que está por trás de toda essa sua fala, padre – afiançou Santo Cristo, severo.
Nesse momento, os homens e mulheres começaram a gritar e levantar as suas armas em apoio ao que Santo Cristo respondera. Padre Joaquim olhava em volta, sentindo-se ameaçado. Santo Cristo então levantou uma das mãos, pedindo para que todos se acalmassem. Santo Padre também pediu silêncio. Logo, a multidão irada arrefeceu. Santo Cristo continuou a falar.
- É só isso? Trabalho escravo? O que o Imperador quer nos dar?
- Mas os trabalhadores serão pagos! - observou o padre.
- Nem todos serão pagos; e, os que serão pagos receberão migalhas e sofrimento, padre! - disse Santo Cristo. - O que esses homens e mulheres mais desejam é liberdade, padre - disse ainda, com força. Voltar às suas origens no meio da selva. E suas crianças terão escola, aqui, comigo. Eu lhes prometi e estou cumprindo lhes dar tudo o que eles perderam. O espírito santificado baixou em seus corações. E eles terão o verdadeiro sacramento sem a intervenção de uma igreja intermediadora do poder do Imperador. Uma igreja com padres como o senhor.
Ao escutar e entender essas palavras saídas da boca do seu líder, a multidão de indígenas e negros começou a brandir suas armas e a gritar em conjunto. Santo Cristo sorria de satisfação pelo apoio incondicional de seus seguidores quando uma série de tiros ecoou do interior da selva e assustou a todos, fazendo-os calar e abaixar. Atingido de raspão em um dos braços, Santo Cristo balançou. Dois indígenas caíram mortos ao chão. A multidão de mulheres e crianças começou então a se dispersar e correr aos gritos. Alguns negros e indígenas pegaram o padre e mais os dois homens que o acompanhavam e levaram com o grupo de Santo Cristo, que recuava. Índios entraram na selva com suas bordunas e flechas à procura de quem atirara.
- Demônios! - gritou Santo Cristo. - Vão pagar com a própria vida o erro que cometeram!
Padre Joaquim pensava que tudo agora estava perdido definitivamente. Não era para ter acontecido aquilo. Em seu íntimo, sentiu que aquela estória toda terminaria em mais sangue derramado. Por um momento o padre desejou nunca ter aceitado aquela empreitada absurda.
Os indígenas que caçavam os soldados que atiraram do interior da floresta então subiram em árvores e, da posição em que se encontravam, dispararam suas setas e os mataram impiedosamente. Os soldados imperiais não tiveram tempo para disparar mais um tiro sequer. Depois os indígenas pegaram seus corpos e golpearam suas cabeças, com os tacapes, esfacelando seus cérebros.
Santo Cristo estava com seu grupo embaixo de uma árvore. Seu ferimento sangrava muito, mas ele parecia não estar sentindo nenhuma dor. Maria Santa chorava sem poder fazer nada. Santo Padre e mais alguns índios e negros que haviam aprisionado o vigário e os dois homens, esperavam uma ordem vinda de Santo Cristo para poderem dar um fim, ou não, àqueles três homens amedrontados.
- Que vamos fazer com esses aqui, Santo? - perguntou um Santo Padre enfezado.
- Mandá-los de volta de onde saíram, levando como recado, ao presidente, o relato de tudo o que aconteceu aqui - disse Santo Cristo. - Viu só padre!? - rosnou então o líder carismático, repentinamente. Vocês fizeram tudo isso acontecer. Estávamos em paz!
O padre o olhou de soslaio e quase que concordou com ele.
- Vieram em paz? - ironizou Santo Cristo.
- Não era para ter acontecido isso tudo - respondeu o padre.
- Mas soldados armados estavam escondidos na selva! - gritou ainda mais um Santo Cristo irado. - Pessoas morreram, padre! - vociferou Santo Cristo.
O padre nada respondeu e abaixou a cabeça.
- Agora o senhor vai voltar àquela maldita cidade e dizer ao seu presidente que mais fortes são os poderes do povo de Santo Cristo! - disse. - E que se ele quiser nos derrotar vai ter que lutar muito mais - completou.
- Nós só queríamos conversar e tentar convencer o povo a voltar para trabalhar na Barra - cortou o padre.
- O povo quer liberdade e justiça, padre - observou Santo Cristo. - Diga isso a seu comandante! - exclamou. Agora vão embora daqui o mais rápido possível - finalizou, virando as costas.
- E os corpos dos soldados mortos? - perguntou o padre.
- Apodrecerão como alimento para as feras - respondeu Santo Cristo, voltando-se. - Mas Deus tomará conta de suas almas - finalizou.
Capítulo VIII
Padre Joaquim, em sua caminhada de retorno à cidade, não parava de pensar naqueles pobres militares mortos e deixados lá atrás. Em seu pensamento via os soldados estirados na selva, e os seus corpos sendo ensopados pela água daquela chuva. E assim que a chuva passasse, devorados por vermes e animais selvagens. Em questão de dias só lhes restariam os ossos. Seus pensamentos então se desviaram desse foco e vislumbraram o semblante severo do presidente Ferreira Pena. Ficaria zangado ao extremo, quando soubesse o que lhes acontecera.
- MAS COMO ISSO ACONTECEU!? - esbravejou o presidente da Província, socando o tampo da sua mesa de trabalho. Os olhos esbugalhados de raiva.
- Foi tudo muito rápido, excelência - explicava um atônito padre Joaquim. Quando vi, estávamos cercados - completou. Logo em seguida houve um tiroteio, gritos e a matança dos pobres coitados. Esse tal Santo Cristo falou ainda de liberdade e justiça para o povo. E que lutará!
Ferreira Pena não acreditava no que ouvia. Deu alguns passos nervosos pelo seu gabinete e falou.
- Isso é muito grave! Muito grave! Esse homem é um alienado! Um assassino!
- Concordo com o senhor, presidente.
- Precisa ser preso imediatamente! - continuou Ferreira Pena. - Amanhã mesmo tomarei as providências necessárias para aprisionarmos esse messias de meia-tigela e esses revoltosos que estão a seu lado - completou.
- Vai ser preciso um batalhão bem armado - aconselhou o padre.
- Que o seja, padre - disse Ferreira Pena, procurando se acalmar. - Eles estão se rebelando contra o Império - continuou. Terei todas as forças para debelar esses focos de revolta.
- Mas eles são muitos, excelência; e estão armados com flechas, pedaços de pau e espingardas - retrucou o padre. Seus olhos fitavam os do presidente na procura de respostas às suas dúvidas.
O presidente, que não parava de andar de um lado para o outro do seu gabinete com as mãos atrás das costas e semblante fechado, disse então:
- E nós também, padre! Se for preciso solicitarei reforços imperiais. Escreverei aos homens do Império. Essas revoltas não podem mais acontecer. Onde já se viu, padre!? Daremos a resposta, sim. E essa gente terá que voltar para a vila e trabalhar na construção da igreja e nas outras obras que aparecerem. Para resolverem sob a benção do imperador e da verdadeira igreja católica.
- Quando o senhor planeja invadir o acampamento desse homem? - perguntou então o padre.
- Falarei com o comando militar da Barra, ainda hoje.
- E a população?
- O que tem a população, padre?
- Quando ficarem sabendo sobre o que aconteceu e...
- Todos têm que saber o que aconteceu, padre! - cortou o presidente. - Na verdade, já devem todos estar sabendo mesmo, a essa hora - concluiu, com um sorrisinho irônico na face.
- Mas eles podem ficar temerosos e abandonar a Barra com medo de uma refrega, como já houve no passado - observou de volta o padre.
- Prenderemos esse revoltoso antes que algo mais grave possa acontecer - afirmou, confiante, o presidente. - Esmagaremos a cabeça dessa víbora antes que ela dê o bote - disse ainda, cerrando os dentes. Se for uma guerra o que ele quer, então ele a terá.
Padre Joaquim não sabia mais o que falar para o presidente. Em seu íntimo desejava apenas descansar e se preocupar apenas com os seus afazeres de religioso. A tarde estava quente e os ânimos deviam ser arrefecidos em busca de um pouco de paz. Despediu-se então do presidente, sentindo que não poderia fazer mais nada. Sua preocupação agora seria atravessar aquela cidade com aquele sol abrasador queimando os seus miolos; e, sob o inevitável olhar perscrutador de todos aqueles moradores bisbilhoteiros, alcançar o seminário para então refrescar-se com um gostoso banho. “Que fizessem as autoridades imperiais qualquer coisa”, pensou padre Joaquim quando alcançou a rua.
A fuga de Santo Cristo pelo interior da selva no intuito de invadir o povoado próximo, foi extremamente difícil para todos. As inúmeras crianças e mulheres sofreram com a caminhada pelo interior da selva. A necessidade de logo atingir o povoado impedia o descanso de todos. Chegar naquele vilarejo quanto antes, era o único pensamento de Santo Cristo. O vilarejo era pobre e ele acreditava que, após expulsar os representantes locais do governo provincial com um breve discurso, teria a adesão do povo do lugar. “Ninguém tinha nada a perder e muito a ganhar com as suas ideias de tomada do poder da Cidade da Barra”, pensava. Toda aquela gente da Província, espalhada por esses vilarejos, vivia o drama do esquecimento e da exploração desmedida do Império; e, iriam aderir facilmente às suas ideias revolucionárias, raciocinava Santo Cristo, enquanto caminhava.
Um pouco de luminosidade começava a aparecer no horizonte quando o seu grupo invadiu, finalmente, o povoado. Cansados e esfomeados, o grupo se subdividiu em dois, dando início à invasão das casas e barracos. A não ser por uns poucos cachorros que ladraram inutilmente, não houve nenhum barulho ou sinal de resistência no pequeno ajuntamento de casas. Pegos de surpresa, assustados e ainda sonolentos, os moradores não esboçaram nenhum gesto. Dois soldados sediados na Barra e que compunham o pequeno efetivo militar do vilarejo, também não esboçaram nenhuma reação. Entregaram suas armas, como que surpresos e impotentes pela quantidade de indígenas e escravos que havia invadido a cidade. Santo Cristo observava tudo calado. Nas casas, homens, mulheres e crianças procuravam qualquer coisa para comer. E os moradores do vilarejo tratavam de satisfazê-los imediatamente. Com as autoridades então colocadas em um barco e expulsas de volta à Barra, Santo Cristo pôde descansar. Mas, no outro dia, quando o sol se pôs, o líder messiânico resolveu juntar todos na única rua do lugar, para que escutassem o que ele iria dizer.
Quando finalmente aquela multidão toda de gente maltrapilha do vilarejo miserável e mais os seus se juntaram, Santo Cristo, acompanhado de Maria Santa, subiu em um tronco de uma imensa árvore caída e começou a discursar.
- Estamos aqui em uma missão divina e de paz, com vocês! - disse, num rompante, aos moradores do povoado. E continuou: - Uma missão redentora que Deus me ordenou a realizar. Não fiquem receosos de nada! Somos um povo que finalmente se une para lutar contra a opressão deste império dos homens de lá. Mas, em nome de nosso senhor Jesus Cristo, construiremos um novo mundo nesta selva e por entre esses rios! Vocês são felizes!?
Santo Cristo fez essa pergunta e ficou olhando para o povo da cidade que, antes impávido, começou a se mexer em uma inquietação nervosa.
- É claro que não são! - continuou o messias, cortando o silêncio e ele mesmo respondendo à pergunta feita. - Vejo, em suas faces, as marcas do sofrimento e do esquecimento - disse. São escravos de um regime que só quer explorar suas forças, sem nada dar em troca. Querem construir suas riquezas em cima da pobreza de vocês. Mas é a partir deste lugar aqui que tudo mudará! ... Construiremos, aqui, ao redor ... Bem aqui... Uma fortificação para as nossas almas. Um forte glorioso de pau e pedra ... E defenderemos a nossa fé em Cristo ... Depois, com novos aliados - o povo de Deus! - conquistaremos toda a Província! ... Darei a vocês a liberdade e o reino do céu, na Terra! ... Sou o Santo Cristo, representante do senhor nosso Deus perto de vocês! ... Trago a palavra como quem traz um archote ... Sou a luz de um novo tempo!
Ao escutar tudo isso saindo da boca daquele homem enigmático, o povaréu recomeçou a se mexer mais ainda, como se fosse um organismo único e que de repente tivesse sido acordado de um sono. Muitos começaram a sorrir. A princípio, timidamente, depois com certa força. Um dos moradores gritou então:
- VIVA O NOSSO REI!
No que foi seguido por uma série de apupos vindos do povinho miúdo.
- VIVA! VIVA! ELE É O NOSSO SANTO! SANTO! SANTO! SANTO CRISTO DA VILA DA BARRA!
Em cima daquele tronco, Santo Cristo apenas sorria de satisfação por tão rápida adesão.
- A luta será difícil! - recomeçou Santo Cristo. - E quando tivermos a nossa base segura, invadiremos a Barra - completou, ainda sorrindo e confiante. Tudo isso me foi revelado em um sonho divino ... Teremos a igreja do nosso governo desta terra ... Em uma enorme e fabulosa igreja, onde os sinos da liberdade repicarão sob o comando das nossas mãos... Sinos forjados por nós.
No dia seguinte àquela invasão, Santo Cristo e Santo Padre já conversavam com os homens do povaréu que haviam sido cooptados para os ajudarem a prosseguir com a causa.
- Vou precisar da ajuda de vocês para organizarmos uma defesa nesse local - dizia. - A minha ideia é fortificarmos esta posição com uma grande paliçada ao redor do povoado; um muro; fortim feito de troncos, pedras e terra - explicava, apontando para o horizonte. Uma fortificação que circunde todo o vilarejo. Meu companheiro, Santo Padre, este que aqui está presente, tem conhecimento suficiente para dirigir a construção deste forte. E quanto às armas? Quantas vocês conseguiram?
- Temos as nossas e alguns cartuchos - respondeu um.
- Precisaremos de mais - observou Santo Cristo. - E o senhor vai nos arranjar de qualquer jeito, indo até a Barra - ordenou ainda, dirigindo-se a um homem que os ajudava. Você e Santo Padre até lá. Ninguém conhece Santo Padre
O homem o fitou intrigado, mas concordando.
- Quero que vá, acompanhado de um dos meus homens, até à cidade, ao quartel e subtraia algumas armas - explicou melhor.
Enquanto Santo Cristo ainda falava, orientando aquela sua luta, Maria Santa apareceu ao seu lado. Com a barriga pesada e os pés doloridos, sentou-se no chão. Aos pés de seu homem. Sentia-se exausta e preocupada por tudo aquilo estar acontecendo daquela forma. Sentia muito medo. Começava a pensar que os caminhos de Santo Cristo haviam tomado outro rumo. Um rumo perigoso e inseguro. Pensava naquelas crianças e em seu próprio filho que estava para nascer. “E se houvesse mais lutas e mais mortes?”
Santo Cristo então parou de falar e virou-se para ela.
- Que tens mulher? - perguntou.
- Medo, Santo.
Santo Cristo respirou fundo e disse:
- Mas não deves.
Maria Santa levantou-se e o abraçou.
- A morte daqueles homens e isso agora - continuou Maria Santa. O olhar demonstrando pavor.
- Aconteceu e agora é preciso lutar pela liberdade - ressaltou Santo Cristo.
- Quero paz para poder ter meu filho. Nosso filho.
- Ele nascerá em uma terra livre.
- Mas para que isso possa acontecer, teremos que derramar mais sangue, meu Santo? - indagou uma Maria desnorteada.
Santo Cristo passou a mão pelos cabelos de Maria Santa com um extremo carinho. Também tinha medo, mas por algum motivo que estava além de suas forças, sentia que precisava acreditar que venceria. Por uma questão de honra acima dos limites. Maria Santa, pelo seu lado, sentia todo o amor daquele homem lhe penetrando a alma e como que acendendo uma chama de esperança. Mesmo que todos esses pensamentos tenebrosos e de dúvidas estivessem sempre presentes em sua cabeça, ela o amava acima de tudo. Santo Cristo então desviou seu olhar em direção à selva e falou.
- Esta terra é o paraíso. E aqui devemos recomeçar plantando a semente de um novo tempo e sob as bênçãos de Nossa Senhora da Conceição ... A Cidade da Barra será a sede, não de um governo escravocrata, mas do reino de Deus na Terra ... Com todos vivendo em paz e harmonia. Nossos filhos precisam dessa nova terra.
Longe dali, mais uma tarde, com um mormaço de um meio-dia triste, Miranda e Silva Ramos estavam sentados no botequim do velho Matos. Bebericando, fumando e em suas conversas fiadas, na espera de que aquele tempo passasse.
- Pois é, senhor Silva Ramos, essas comidas e bebidas são minha perdição - dizia Miranda, entre um gole e outro de aguardente, procurando se justificar do que haviam comentado na cidade. O rosto gordo quase estourando de vermelhidão.
O tipógrafo apenas ria, apreciador que era das estórias que circulavam na cidade. Principalmente sobre o vice-presidente bonachão.
- Mas estou pouco me importando com o que falam por aí - completou um vice-presidente afogueado. - Mas e tu, meu caro escriba, o que fazes da vida? - perguntou, enquanto colocava um enorme pedaço de chouriço na boca, seguido de uma golada de aguardente.
Silva Ramos ajeitou-se no banco, puxou um pouco de seu fumo, franziu o cenho, e respondeu.
- Ando escrevendo muito, como bem o sabes. E entre uma folga e outra, cuido de viajar por essas paragens em busca de notícias sobre o Império.
- E as mulheres, meu caro amigo?
- Ah! As mulheres. São necessárias para alegrar a vida, não?! - respondeu, enigmático, Silva Ramos.
- Alegrar a vida, sim! - exclamou Miranda. - E quanto mais mulher, maior é a alegria, não é, meu caro? - completou, caindo numa sonora gargalhada.
Silva Ramos não respondeu. Suas ocupações agora eram outras. Há tempos que por sua cabeça passavam os pensamentos mais preocupantes sobre a Província. Intelectual e conhecedor de todas as facetas do Império, Silva Ramos sentia que a situação geral não andava bem.
- E o vigário, por onde anda? - perguntou Silva Ramos, então. Procurando afastar essas preocupações de sua cabeça.
- Não sei, sumiu dessas plagas faz tempo - respondeu Miranda. - Deve estar circulando por alguma prelazia - continuou, indiferente. Esses padres só sabem fazer isso.
- E a igreja Matriz, sai quando?
- Só Deus sabe, meu amigo. O presidente nomeou um tal de Wilkens para tocar as obras. Mas com que dinheiro para as compras, não sei?
- Me parece que ninguém mais move um dedo nessa direção.
- Para quê? Não temos nem mão de obra especializada para construir tão grandiosa obra.
- Está tudo tão parado nesta cidade - observou Silva Ramos, olhando para a rua.
- Parte do povo sumiu, sabes - observou Miranda. - Só ficou quem já tinha o seu negócio e esses comerciantes portugueses avarentos e suas esposas reclusas - explicou. E tem alguns indígenas preguiçosos, doutor Silva Ramos. Já reparou que ninguém mais quer ficar na cidade? E onde andam os padres, que bem poderiam congregar esse povo disperso e alheio? Pelo meio do mato com alguns indiozinhos, não?
- Este país está difícil de governar, Miranda - lamentou Silva Ramos. - Essa gente passa fome e enfrenta dificuldades de toda a espécie - completou.
- Sabe de uma coisa, Silva. Não me importo muito com os rumos dessa Província. Quero é viver minha vida. O Império destina verbas para as construções porque precisa manter seu poder.
- Sei.
- Olhe lá p’ra fora mais uma vez, Silva - disse Miranda, chamando a atenção de Silva Ramos. - O que o senhor está vendo? - perguntou ainda.
Silva Ramos não soube o que dizer.
- Não existe futuro para a gente daqui - arrematou Miranda, explicando sua observação. - Somos pagos pelos nossos soldos para apenas fingir que estamos governando - continuou. O resto é apenas uma encenação para manter a direção frouxa de tudo.
Silva Ramos puxou uma baforada de seu fumo e disse:
- Muitas vezes penso sobre isso. Mas de quem é a culpa?
- Não existem culpados - respondeu Miranda. Só vítimas - completou, bebendo um pouco da aguardente.
- Mas me parece que o doutor Ferreira Pena quer outras coisas - disse Silva Ramos.
- Sim. E eu também. Veremos o que o futuro nos reserva?
Os dois homens então resolveram se calar. Naquela tarde calma da Cidade da Barra do Rio Negro, nenhum assunto poderia dar prosseguimento a contento, em face da esperança de todos os que moravam naquele lugar ainda ser pequena. Ou até inexistente.
Capítulo IX
O ano de 1853 também passou sem nenhuma possibilidade de ataque imediato por parte das forças de Ferreira Pena. Convencido da triste realidade de seu efetivo militar, o presidente da província sentia que teria que planejar melhor esse ataque a Santo Cristo. A mobilização de suas forças para combater aquele homem, que não perdia um só tempo de sua vida a promover uma espécie de catequização contrária ao Império e à própria igreja estabelecida, não poderia ser mal realizada e sem reforços imperiais. Na cabeça dos indígenas cooptados das tribos do alto rio Negro, o movimento messiânico de Santo Cristo se fortalecia a cada dia que passava; e, para atacá-lo, teria que haver maiores recursos militares. Através de seus espiões, Ferreira Pena ficara sabendo que certos povoados e freguesias haviam aderido totalmente à liderança de Santo Cristo. Todos estavam reunidos num vilarejo de nome Santa Isabel, que haviam transformado de um povoado inexpressivo em uma verdadeira fortaleza, construída de pau e pedra estucada. Já passavam de mil homens e mulheres armados, relatavam os espiões, o rebanho de Santo Cristo. Dispostos a darem as suas vidas em troca de um reino dos céus na Terra. Quanto aos outros problemas a resolver, principalmente administrativos, ele os resolveria.
Mas enquanto essas coisas absurdas não se resolviam, na cidade da Barra a situação era outra.
- Será preciso esperar mais um pouco - dizia o coronel Ignácio, sentado na varanda da casa do presidente. - Talvez com a chegada do verão - completou cabisbaixo.
- Enquanto isso, coronel, treine suas tropas e discipline-as ao máximo - disse o presidente, com um ar de autoridade e impaciência calculada. - Quero acabar com essa estória o mais rápido possível - fez observar. E de preferência sem muitas mortes. Preciso desses fugitivos de volta à cidade e trabalhando em nossas obras. As crianças sendo educadas e as mulheres cuidando de todos. Já chega de revoltas ao Império. Precisamos de um longo e laborioso período de ordem e progresso.
O coronel balançava a cabeça, concordando. E falou:
- Aconteceu uma coisa horrível no quartel, presidente - titubeou, tentando mudar de assunto. Tinha receio em revelar o que soubera, durante a manhã, no quartel.
- Diga logo, homem, o que é!? - reclamou o presidente, percebendo o nervosismo de seu comandado.
- É que, bem; é que algumas armas foram surrupiadas do quartel, presidente - desabafou, meio sem jeito, o coronel. E ficou esperando a reação do governante.
- Como é!? - exclamou um presidente aparvalhado com a informação, quase sem querer acreditar no que escutara. Por uns momentos ele não acreditou, mesmo, no que escutara. A vontade que teve foi de esbravejar o mais alto possível. Mas conteve a raiva e a impaciência.
- Tratem disso, pelo amor de nosso Deus! Exclamou, passando um lenço de seda pelo rosto suado. - Encontrem os culpados e tranquem essas armas melhor! - conseguiu falar, bastante nervoso.
Após a saída do coronel, o presidente suspirou fundo. Sentia-se totalmente contrariado com os rumos dos acontecimentos e das atitudes absurdas daqueles seus comandados ineficientes. Foi então até à janela de seu gabinete e ficou olhando aquele rio e os mercadores ali perto. Uma lufada de um vento morno subia da praia. Centenas de aves de rapina de penas negras inundavam uma nesga do céu. Ferreira Pena não via com bons olhos o viver diário naquela cidade insana.
Mas, na selva, o povoado de Santa Isabel adquiria contornos certamente diferentes. Uma verdadeira muralha feita de pedaços de tronco, pedra, barro e areia foi erguida ao redor do povoado. Santo Cristo conseguira, com a ajuda de uma centena de seguidores fiéis, transformar o pequeno vilarejo perdido no interior da selva fechada, em um forte que se configurava, pela aparência monstruosa que adquiria, inexpugnável.
Esse muro, aparentemente tosco, adquirira uma firmeza de entrelaçamentos de materiais os mais diversos, que alcançava cerca de cinco metros de altura. Tudo isso feito com o intuito de proteger uma ideia de liberdade e uma leva de fugitivos que já chegava a mais de mil e novecentas almas. Fora os habitantes do povoado, diversos indígenas, pobres, ignorantes e desvalidos de todo o alto Rio Negro, formavam um amálgama de desesperados e esperançosos, que haviam sido atraídos pela cantilena do tal homem santo que “aparecera para libertar o povo oprimido”. Naquela cidade de Santa Isabel a esperança de uma vida melhor tinha um nome forte: Santo Cristo. E sob o seu jugo e discursos apologéticos, esse tal homem, que muitos afirmavam até ser milagreiro, fazia as famílias se comportarem como ovelhas apascentadas e os homens fortes como soldados prontos para uma batalha. Todos construindo castelos, fortalezas e igrejas no ar. No meio da selva. Aquele vilarejo, antes inexpressivo, pobre e isolado, agora vivia um crescimento aparentemente caótico e sem igual. Cercados por aquelas paliçadas nos quatro pontos do horizonte, casas e mais casas eram erguidas para abrigar toda essa gente que acreditava na liberdade, e que, em uma desordem aparente, chegava a beirar os limites de um verdadeiro delírio coletivo. Santo Cristo, este agia como se fosse o próprio senhor do universo no meio daquele aglomerado todo de gente. Sempre seguido por uma Maria Santa ainda mais silenciosa, grávida de cinco meses.
Capítulo X
Aquele dia amanheceu nublado na cidade da Barra. Mas mesmo tremendo de frio, a soldadesca imperial da Província estava em formação de sentido no pátio do quartel. Um efetivo de trezentos e vinte homens reunidos militarmente. Todos a postos e com seus fuzis e baionetas. Prontos para um ataque surpresa ao povoado de Santa Isabel. O presidente Ferreira Pena, mesmo sem a ajuda mais efetiva dos homens do Império, resolvera tomar a iniciativa de fazer alguma coisa contra o movimento de Santo Cristo, sabedor do crescimento desse tal forte ao redor do povoado de Santa Isabel e do fato dele pretender invadir a Barra. Seria uma primeira incursão militar, que mesmo insuficiente, era corajosa.
Na frente deste pelotão estava indo o cabo Ventura, um rapazola quase imberbe. Segurava, todo orgulhoso, a bandeira do Império; a seu lado estava o corneteiro e o coronel Ignácio, todo engalanado. Uma tropa de quinze burricos carregando mantimentos de todos os tipos, seguia impacientemente atrás do pelotão. Três soldados tentavam a todo custo mantê-las quietas e enfileiradas. Fora isso, o silêncio era total. Fuzis carregados, baionetas acomodadas, todos pareciam estar preparados para aquela empreitada militar misteriosa e organizada às pressas. Os soldados não sabiam sequer o que iriam fazer e como iriam atacar, mas, sob o comando de um coronel Ignácio, devidamente engalanado e disciplinador, todos seguiam as ordens de comando. Para eles também era uma oportunidade de estrearem as novas armas recebidas.
A um canto do quartel, junto ao vice-presidente Miranda e abrigando-se daquela friagem atípica que baixara naquela manhã, encontrava-se o presidente da Província. Um pouco cabisbaixo e tenso, olhava para a ponta de sua bota envolvido por mil pensamentos sobre aquela decisão de atacar o povoado de Santa Isabel. Já havia algum tempo que as notícias sobre a fortaleza de pau e pedra, erguida sob as ordens do tal homem santo, eram as mais preocupantes possíveis. Diziam que ele tinha sob o seu comando homens armados; e que no interior da fortaleza erguida havia até alguns canhões; e que eram milhares de indígenas rebeldes entocados no interior do povoado. Tudo isso e mais o fato de alguns de seus homens terem sido assassinados há três meses, agravava ainda mais essa situação. Mas Ferreira Pena também sabia que o panorama de paz, que parecia estar reinando no Império, não admitia mais aventuras de qualquer espécie. Todos, segundo a sua ótica, deveriam estar unidos sob as bênçãos do imperador e da santa igreja católica. Ferreira Pena então decidira efetuar aquele ataque, por acreditar e ter fé de que sob o fogo de baionetas cerradas de um número considerável de soldados dispostos, Santo Cristo cairia a seus pés. Os soldados estavam bem treinados e não eram simples trabalhadores fugitivos e indígenas rebelados.
- Acho que estamos prontos, não é Miranda? - perguntou o presidente, pegando levemente no braço de um vice-presidente sonolento e amortecido. - Sim - respondeu Miranda, meio assustado.
- Não vejo a hora de tudo isso acabar logo e aquela gente voltar para a Cidade da Barra, a qual é o seu lugar - comentou Ferreira Pena.
- O coronel Ignácio dará conta de tudo - respondeu Miranda. Vamos então - sugeriu, pegando no braço do presidente.
- Ainda não, Miranda.
- Esperamos o quê, presidente?
- A partida das tropas.
- Ah!
A partida das tropas se deu silenciosamente e quase melancólica. Envolvidos pela neblina espessa que caía, o grupo saiu em marcha cadenciada pelas dobras e saliências da cidade como um organismo vivo e coeso, mas, ao mesmo tempo, fantasmagórico. Devido ao tempo muito nublado e com o frio reinante, poucos moradores se atreveram a ver a saída do batalhão. Alguns familiares de soldados é que, de suas casas, acenavam com votos de boa sorte e vivas ao imperador. Sob o comando do coronel Ignácio, todos imaginavam que teriam muito que caminhar e muito o que enfrentar. Principalmente a selva; uma floresta cheia de obstáculos emaranhados, quase inexpugnáveis. Mas para aquela empreitada militar no meio da selva, os batedores e mateiros eram de extrema importância. Com seus facões e piquetes, abririam caminho para os soldados e os burricos. A estratégia do coronel era caminhar um bom tempo pela estrada de barro que levava ao povoado; e, depois de um tempo, quando faltassem apenas alguns quilômetros, tomar um caminho inverso, procurando atingir o povoado de Santa Isabel pelo interior da mata cerrada, que ficava em um dos seus flancos.
Após três dias de caminhada, as tropas imperiais estavam acantonadas acerca de duzentos metros da cidadela, em uma clareira aberta no meio da selva. Embora exaustos e com os ânimos arrefecidos pelo percurso absurdo no interior daquela selva quase inexpugnável, os soldados ansiavam por um ataque ao povoado e que acabasse logo de vez com tudo aquilo. Percebendo no semblante de seus comandados a ânsia por uma tomada de posição, o coronel Ignácio, acompanhado do seu major Tertuliano, colocou-se bem no centro da clareira e, suspendendo com o descanso de suas tropas, deu ordem de se reunirem. Imediatamente então a força da guarnição da Província, composta de artilheiros e caçadores, prontificou-se em linha.
- ATENÇÃO, COMPANHIA! - gritava o Major, comandando a obediência. - O coronel dará as instruções iniciais sobre o nosso objetivo - continuou.
O coronel Ignácio então deu um passo à frente e berrou.
- REPRESENTANTES E DEFENSORES DO IMPÉRIO! ... É CHEGADA A HORA DA NOSSA BATALHA! ... O povoado que atacaremos é o de Santa Isabel, a poucos metros de onde estamos, que foi invadido por forças revoltosas! ... O povoado está fortificado por uma muralha que teremos que ultrapassar! ... Esta batalha é em defesa de nossa cidade da Barra, que eles também tencionam invadir! ...
Dito tudo isso, o coronel Ignácio então respirou fundo e cedeu o seu lugar ao major Tertuliano. Homem forte e atarracado, de olhar penetrante e decidido. Emoldurado por enormes suíças que quase fechavam um rosto grosso e não bem cuidado. Tertuliano ansiava em comandar todos aqueles homens no assalto e invasão do povoado. Segurando firme a bainha de sua espada, empertigou-se mais ainda, antes de falar.
- COMPANHEIROS! ... ATACAREMOS DIVIDIDOS EM TRÊS FILAS! ... Os artilheiros na frente! ... Ataquem em formação! ... O corneteiro Ventura dará a ordem! ... Procurem e atirem nos homens que estejam armados! ... Os outros devem ser capturados!
As forças imperiais da Província, acreditando na surpresa, prepararam-se então para o ataque. Mas a surpresa não haveria de acontecer pelo simples fato de que o som das ordens de comando que os dois homens emitiram propagara-se pelo silêncio da mata de forma quase que totalmente audível, em direção a ouvidos mais atentos do povoado de Santa Isabel. Na verdade, quase todo o povoado escutara os berros do coronel Ignácio e do major Tertuliano naqueles duzentos metros de distância, que os separavam. Pura ingenuidade, cansaço ou ansiedade em excesso por parte dos militares da Barra. Que teria de ser pago, por todos, por um alto preço, pois o povo armado do povoado de Santa Isabel, comandados por um Santo Cristo enfurecido, já tratava de se posicionar na expectativa daquele ataque iminente das forças imperiais. A batalha de Santa Isabel, que daqui a mais um pouco estaria acontecendo, afigurava-se sangrenta para todos os envolvidos.
Santo Cristo ultimou pessoalmente os preparativos de defesa do povoado de Santa Isabel. Acompanhado de Santo Padre, ordenava para que indígenas, caboclos e negros se posicionassem em pontos da paliçada. Todos devidamente armados com todo o tipo de armas possíveis de existirem em suas mãos. Os indígenas com suas flechas e os caboclos e escravos com alguns fuzis, facões e machados. E enquanto comandava seus homens, Santo Cristo os insuflava com palavras de fé, misturadas com incentivo à matança que se avizinhava.
- CRISTO ESTÁ CONOSCO! ... Acabaremos com esse mal que se aproxima! ... Por nossa Igreja da selva! Igreja que se edificará. Pois este sangue não será em vão! ...Vamos! ...Vamos!
E os homens e mulheres do povoado de Santa Isabel, como que hipnotizados por aquelas palavras saídas em jorro daquela boca santa, movimentavam-se em busca de uma atitude para uma proteção qualquer ou ponto de ataque melhor. No céu, um crepúsculo de nuvens vermelhas já começava a cobrir o destino de todos. Faltava pouco menos de uma hora para o anoitecer na floresta e uma algazarra de inúmeros pássaros e macacos açoitava o ar em todas as direções.
Dispostos em três colunas ordenadas, cerca de pouco mais de duzentos homens armados, que perfaziam parte do efetivo da Província, avançavam céleres e dispostos a matar ou morrer. Havia ódio e medo em seus olhares. Mas nenhuma dúvida sobre o que deveriam fazer. A raiva maior era por estarem ali naquela floresta. Longe da Barra e de seus familiares. Por isso, teriam que ser rápidos, certeiros e sanguinários. Armados principalmente de baionetas e espadas, aproximavam-se do povoado com o instinto assassino latejando nas veias. A marcha, apesar do emaranhado de plantas e cipós, estava acelerada, pois os mateiros abriam o caminho de forma firme e segura. O coronel Ignácio comandava a fileira do meio; o major Tertuliano, a da esquerda; e um jovem tenente, de nome Alfredo, a da direita. O corneteiro Ventura estava quase colado ao coronel. Na sua juventude e inexperiência, olhava para tudo aquilo acontecendo como se fosse um pesadelo que tivesse que enfrentar. Sentia muito medo, mas ia em frente. Com o seu orgulho inicial em participar daquela campanha como corneteiro. Mas não queria morrer de jeito nenhum por causa daquela batalha no meio da selva. Teria apenas de tocar aquela corneta que carregava como uma arma, de qualquer jeito. “Ah, isso teria”. De repente, sob o comando de seu chefe, as fileiras começaram a se abrir em leque. A fortaleza do povoado de Santa Isabel já se encontrava a poucos metros de distância. Não demorou muito para o coronel ordenar o ataque.
O toque de ataque por parte do corneteiro Ventura foi feito seguramente, mas breve, trespassado que foi por uma enorme flecha. Uma das primeiras baixas, das inúmeras que ainda aconteceriam entre as fileiras dos militares da Barra. Por entre uma intensa saraivada de flechas e tiros, os imperiais iniciaram o ataque, tentando, a todo custo, galgar aqueles tocos como que untados por uma cera pegajosa e que formavam a defesa murada e fortificada da cidade. Alguns soldados sucumbiram logo no início, escorregando e baleados ou flechados sem dar sequer um tiro. O coronel Ignácio gritava o mais que podia para a tropa invadir logo a fortaleza. As flechas, passando e zunindo perigosamente ao seu redor. Alguns soldados tentavam localizar de onde elas partiam e atiravam na direção pressuposta. Uns vinte e cinco soldados conseguiram alcançar o topo da fortaleza e, logo ali, iniciou-se um combate corpo a corpo entre os imperiais e alguns caboclos e escravos. As baionetas, espadas e facões furavam troncos, membros e pescoços em uma luta de vida e morte, sem tempo para qualquer tipo de pensamento. O que contava naquele momento era apenas o pavor, o ódio incontrolável e a luta pela vida. O tenente Alfredo comandava esse grupo de ataque. Manejando sua espada com uma violência e destreza sem igual, fez logo duas cabeças de caboclos voarem longe, envolvidas em espanto e sangue. Mas havia mais caboclos e indígenas do que se poderia imaginar. A coluna, que estava sob o comando do major Tertuliano, estava praticamente imobilizada e sem poder de avanço. Flechas e tiros, vindo de todos os lados, faziam-nos se protegerem sem nenhuma possibilidade de reação. Foi quando Tertuliano viu que teria que se arriscar e comandar os seus homens para um ataque feroz.
- AO ATAQUE, HOMENS! LEVANTEM-SE! VAMOS! - bradou o major.
Os homens sob o seu comando imediatamente se levantaram. O ataque impiedoso das flechas e tiros derrubou, de uma só vez, uns quinze soldados. Tertuliano gritou ainda mais alto e avançou. Uma flecha o atingiu de raspão. Mas logo a sua coluna também estava galgando a fortaleza.
No interior da fortaleza, devidamente protegido, Santo Cristo acreditava na vitória. No alto da fortaleza, lutando como possessos, seus seguidores pareciam estar rechaçando os soldados. Santo Cristo viu quando Santo Padre matou dois soldados, decepando parte dos corpos com a lâmina de um machado. Maria Santa, ao seu lado, apenas tremia de medo. As mulheres e crianças estavam todas encolhidas nas casas e tremiam também, com o pavor estampado em seus rostos. A luta estava em seu momento mais cruento e sanguinário. Muitos homens morriam, entre tiros e flechas disparadas; e entre gritos dos mais diversos e estridentes. Gritos que iam do puro desespero imediato em face da morte ou de um comando necessário ao enfrentamento. Gritos que saíam do fundo de almas dilaceradas e envolvidas pelo ódio de uma batalha de feras. Da parte dos homens de Santo Cristo rompiam brados exacerbados e insolentes, lançados a cada arremetida contra o inimigo. Frases desafiadoras, como: “RECUA! BANDO DE MISERÁVEIS DO GOVERNO!”; ou: “POR NOSSO SANTO CRISTO, DIVINO E SANTO!”; ou: “TOMA! CAMBADA DE FRACOS!”. Quanto aos homens do governo, havia por parte deles uma mistura de gritos e urros de exaltação ao imperador e de incentivo ao avanço constante das tropas, como: “VAMOS, HOMENS!”; “PELO IMPERADOR E A NOSSA IGREJA CATÓLICA!”; “MORTE AOS MALDITOS DO DIABO!”.
A batalha de Santa Isabel atingia um ponto em que corpos caíam por todos os cantos, despedaçados e perfurados pelo ódio armado dos homens. Isso tudo durou um momento de tempo que parecia não ter tido um começo e que poderia n ter um fim. Até que, em dado momento, os gritos e estardalhaços pareceram diminuir de intensidade. Houve um momento de vacilo e cansaço das partes. Principalmente da parte dos militares. As linhas do governo perdiam. Conscientes, talvez, da impossibilidade de uma vitória face ao poderio do inimigo. As forças de Santo Cristo pareciam ter se agigantado de tal maneira que o inimigo perdeu o fôlego ou a vontade de prosseguir. Os soldados imperiais sentiram então a necessidade de recuar. Apenas o major Tertuliano ainda bradava, com sua voz imperiosa, uma vontade de ataque continuado. Incentivando, no meio daquele caos generalizado que se formara entre as fileiras armadas, uma resistência pífia qualquer. O tenente Alfredo havia recuado de seu inútil avanço com apenas cinco homens sob o seu comando. Sessenta soldados, só de sua coluna, haviam perecido na batalha. O coronel Ignácio também recuava com quinze homens exaustos e feridos. Pouco mais de noventa e cinco cautelosos e sensatos soldados da guarnição da Barra haviam sobrevivido àquela batalha. Nenhum soldado sequer havia transposto a fortaleza do povoado de Santa Isabel. Muitos haviam morrido no topo, tentando uma penetração. Santo Padre e seus homens se rejubilaram ao verem aqueles soldados debandarem, tropeçando e escorregando pela paliçada erigida no meio da selva. Em seu íntimo, o coronel Ignácio sentia-se humilhado e impotente. Pensava também que agora seria preciso um ataque futuro mais forte, e ainda mais planejado, à fortaleza do povoado de Santa Isabel. Os sobreviventes então pegaram os seus burricos e saíram dali o mais rápido possível.
Pouco antes do anoitecer, os pássaros e macacos, que haviam silenciado misteriosamente, voltaram a emitir seus trinados e berros naquele pedaço da selva. No interior da paliçada, mulheres e crianças choravam por seus mortos sob as vistas de um Santo Cristo circunspecto.
Já na cidade da Barra, entre os moradores e parentes dos soldados que haviam saído em campanha, reinava um burburinho de dúvidas e apreensão. Sabedores de que a Guarda Nacional havia saído para enfrentar os revoltosos do homem que se dizia o Cristo, os familiares passaram a perseguir o presidente Ferreira Pena para onde quer que ele fosse. Queriam saber notícias e a verdade sobre o que acontecia. O presidente balançava geralmente a cabeça e abanava as mãos, não sabendo o que dizer. Falava apenas que os soldados já deveriam estar chegando à cidade. “Vitoriosos de uma campanha extremamente necessária para a paz da cidade da Barra do Rio Negro”.
No dia seguinte, um domingo, a cidade amanheceu cercada por uns trinados fabulosos de centena e centenas, talvez de milhares e milhares de cigarras. Um barulho ensurdecedor grassava de todas as árvores da redondeza e perturbava a sesta dos moradores daquele pobre vilarejo que ainda estavam acordando. Padre João abrira os olhos e os ouvidos, chateado com aquele som emitido pelas cigarras. Estava tentando voltar a dormir quando um curumim, de seus dez anos, apareceu correndo em seu quarto.
E gritou:
- ELES ESTÃO CHEGANDO! ELES ESTÃO CHEGANDO!
Padre Joaquim deu um pulo de sua cama, assustado.
- Que é isso, menino!? Que estória é essa de entrar assim em meu quarto!? Quem está chegando!? - repreendeu ao molecote.
- Os soldados, padre!
Padre Joaquim levantou-se num rompante e abriu a janela de seu quarto para ver o que acontecia. Tomou um susto, o coração acelerado, ao divisar o que restara da gloriosa guarnição da Barra. Os soldados que haviam sobrevivido. Andando daquele jeito, quase a arrastar os pés pelo chão. Alguns sendo transportados em macas improvisadas. “Mais da metade dos homens morreu”, pensou o vigário antes de sair às ruas. Os moradores, ao verem o estado dizimado do batalhão, não acreditaram de imediato no que viam. O coronel Ignácio vinha na frente, seguido logo atrás pelo seu major e pelo tenente Alfredo. Sete burricos carregavam o que restara de seus pertences e armas. Todos, homens e animais, transpiravam um cansaço excessivo. Os feridos pareciam estar à beira da morte. E os que estavam de pé carregavam um olhar cansado e desesperador.
E quando, ainda naquela manhã, o presidente da Província do Amazonas ficou sabendo e vendo o que acontecera à sua gloriosa guarnição militar, a sua primeira reação foi cair em um mutismo tão absoluto e circunspecto que até milhares de cigarras, as centenas de araras e os inúmeros macacos, daquela redondeza, resolveram também silenciar. Mas o silêncio durou apenas alguns ínfimos minutos. Os minutos necessários para a concentração de uma explosão de raiva.
- MAS COMO ISSO PODE ACONTECER, HOMEM DE DEUS!? - vociferou o presidente em direção a um abobalhado coronel Ignácio.
Por um lapso de tempo, Ignácio não conseguiu nem pensar, quanto mais articular umas palavras que fossem para responder àquela pergunta incisiva do seu presidente. Apenas cofiou a barba sem saber o que dizer. Em sua mente, viu apenas passar as centenas de seus soldados mortos naquela empreitada.
- Eles eram em maior número e nos surpreenderam - conseguiu dizer.
O presidente bufou ainda mais.
- MAS VOCÊS SÃO SOLDADOS TREINADOS E BEM ARMADOS! ... BANDO DE ENERGÚMENOS! ... SURPREENDIDOS? ... VOCÊS É QUE SAÍRAM DAQUI PARA SURPREENDÊ-LOS ... SEUS ...
O coronel Ignácio abaixou a cabeça e concordou, dizendo:
- Perfeitamente, senhor presidente.
- PERFEITAMENTE!? ... COMO PERFEITAMENTE!? ... É SÓ ISSO O QUE O SENHOR TEM A ME DIZER!? - bufava o presidente.
- Bom ... Temos que voltar lá e ...
- VOLTAR! ... O SENHOR POR ACASO NÃO SABE QUE NÓS NÃO TEMOS DINHEIRO! ... E AGORA, NEM SEQUER SOLDADOS PARA ATACAR QUEM QUER QUE SEJA?
- Podemos requisitar mais tropas e mais armas - completou o coronel Inácio, esperançoso.
- Isso tudo vai custar aos cofres da Província os olhos da cara, meu caro coronel - disse Ferreira Pena, já procurando se acalmar.
- Sim, mas esse incidente é também a oportunidade que temos de trazer mais dinheiro do governo imperial para a nossa Barra - disse um coronel Inácio mais confiante pela ideia. - Veja por outros olhos, presidente - continuou. Quando os homens do império ficarem sabendo que a nossa província está à beira de um colapso; cercada por revoltosos perigosos; dinheiro e tropas não irão faltar.
- Hum! - aquiesceu Ferreira Pena, um pouco mais convencido e apaziguado pela oportunidade aberta.
- Só temos que reorganizar o batalhão de Infantaria da Barra, colocando todas as companhias na ativa - explicava Ignácio. - Fazendo isso, dentro de alguns meses estaremos novamente prontos para um ataque mais robusto - disse ainda. E com um pouco de sobra de dinheiro, nos cofres, para tocarmos as obras necessárias.
Ferreira Pena suspirou profundamente e pensou que talvez esse fosse mesmo o único caminho. Mas, dando as costas para o coronel, encaminhou-se lento e pensativo para a janela de sua sala, visando ter uma visão do rio e do mercado, o que sempre lhe acalmava um pouco. Com os braços cruzados para trás, seus pensamentos mudaram repentinamente de rumo, levando-o para longe daquele lugar. Sentindo-se cansado e à beira de uma exaustão, pensava acima de tudo em deixar aquela maldita cidade inóspita e cheia de problemas, para outro presidente resolver. Ferreira Pena fez então um sinal com a mão para o coronel sair e ficou ali parado, olhando placidamente o grande rio passando ao largo.
(...)
Corria o ano de 1854 e nada da nova igreja sair sequer dos alicerces. Houve até algumas iniciativas e levantamentos das possibilidades de contribuições de particulares e do erário, aqui e ali, mas nada de concreto se realizara ainda. Em uma sessão da Assembleia Legislativa, o deputado Antônio José Moreira havia proposto que se solicitasse ao governo geral do Império a importância de dez mil réis, não só para a construção da Matriz, mas também para outras obras. Em outras sessões e por meio de outros deputados, o mesmo assunto havia sido levantado. E nada. Mas, embora na cidade os deputados e o próprio presidente Ferreira Pena estivessem desiludidos e descrentes de tudo, Santo Cristo, em seu canto, tratava de tocar o seu rebanho delirante. Agora até se sentindo mais fortalecido. Para ele, não havia esse problema de falta de numerário. Os milhares de braços disponíveis; a alimentação silvestre e a própria matéria-prima para qualquer construção estavam ali. Ao alcance da vontade de todos. O povoado, ou melhor dizendo, a fortaleza do povoado de Santa Isabel, havia atingido aquele estágio no qual as possibilidades de uma força conjunta funcionavam a pleno vapor. Como um formigueiro laborioso que houvesse desejado se espalhar e penetrar por todas as dobras e esquinas, daquela vida humilde do interior amazônico. Nos olhos de Santo Cristo, todas as estrelas rebrilhavam ainda mais como a corroborarem seus sonhos. Após a vitória sobre as tropas do governo da Província, ele já não era apenas um líder místico e carismático, mas também, podemos dizer assim, um presidente daquela província de libertos que brotava no meio da selva. Havia naquele povoado tanta gente compartilhando seus sonhos, que a felicidade era uma constante força que brotava no rosto de todos. Santo Padre continuava os trabalhos de um verdadeiro alcaide enquanto a sua Maria Santa, além de carregar uma enorme barriga que parecia estar prestes a espocar, organizava a educação dos curumins espalhados pelo povoado. Todos, na verdade, organizavam-se ao redor de qualquer ideia que, porventura, aparecesse. A última ideia que aparecera, talvez a maior, seria a construção daquela igreja diferente. Uma igreja em plena selva. Uma Matriz espúria, construída para todos aqueles homens e mulheres que se queriam ver livres naquela terra.
Essa igreja começava a ser erguida e a tomar forma a partir do centro do povoado de Santa Isabel. Não era uma igreja simples em sua arquitetura, pois, a curiosidade imaginativa do velho Zeca Macaxeira idealizara uma igreja, que parecia querer alcançar os píncaros de um delírio arquitetônico. Delírio este logo encampado por Santo Cristo. Para se entender essa igreja de Santo Cristo e Zeca Macaxeira, a aproximação mais verdadeira obedecia aos parâmetros artesanais dos traçados indígenas de ocas e cestos. Sua construção, na concepção original, formava-se a partir de uma base, como se fosse um grande palco circular. Nas laterais, servindo como parede, começava a subir um entrelaçamento absurdamente complicado de galhos, barro socado e pedras esmigalhadas para fornecimento de um preenchimento que fosse mais firme. Zeca Macaxeira deixara bem claro que ele seria como uma grande oca; e que subiria até determinado ponto; enrolando-se e afunilando para imitar, no seu ápice, as mãos de uma pessoa em suas preces em direção aos céus. Ela seria tão alta, esta tal igreja de Santo Cristo, que essas mãos em prece seriam vistas a quilômetros de distância. Em seu interior, haveria a configuração de um enorme útero materno, que receberia a todos os milhares de seguidores possíveis e desejosos de seguirem a fé daquele místico.
Miranda gostava daquela visão da baía, vista do alto de sua varanda. E gostava mais ainda daquele dia e daquela hora, em que as dezenas de barcos pesqueiros ficavam aportados na baía do Rio Negro, como que descansando de seus esforços de todas as manhãs, quando chegavam uns atrás dos outros; céleres e vistosos, com aquelas suas velas coloridas, ufanadas com o vento do cair da tarde. Naquele momento, havia então uma movimentação de mercadores e compradores tão intensa na beira do rio, que pareciam muitas vezes até estar em um franco e perigoso confronto pessoal. Era preciso aproveitar aquela hora, pois no outro dia poderia não haver mais peixe fresco. O povo, numa algazarra dos brutos na disputa do apregoamento não só daquele peixe que chegava, mas também das frutas e verduras dispostas em enormes tabuleiros.
Miranda então desviou o seu olhar um pouco mais para a esquerda e viu os inúmeros burros de carga dos mercadores, amarrados em uma enorme vara. Também descansavam indolentes, esperando o tempo passar. Um pouco mais além, indígenas miseráveis acantonavam-se em uma parte da praia, deitados na areia. Um pouco mais distante daquele tumulto, em uma parte mais limpa do rio, mulheres limpavam os enormes tachos que durante o dia serviram para acondicionar a banha das tartarugas e as carnes salgadas. Em todas as direções possíveis de se ver, do alto daquela varanda da casa do vice-presidente, dezenas de casas de estivas fechavam suas portas, a se despedirem de mais um dia de trabalho. Os olhos melancólicos e quase sonolentos de Miranda então se fixaram no banzeiro que açoitava a praia, em um movimento cadenciado e sensual de um vai e vem eterno, e ele então passou a se lembrar de que estava vivo. Desviou o olhar para o braço de rio, de águas escuras e calmas, que escorria do interior da floresta, por debaixo da primeira ponte, e observou detidamente a pequena colina onde estavam as ruínas da velha olaria imperial, já perto da primeira ponte. Havia muita paz naquele trecho. Passou então a observar quatro aguadeiros a guardarem os seus burricos, em uma pequena cobertura de palha que havia ali perto.
A luz daquele final de tarde, na Cidade da Barra, esmaecia pouco a pouco, prenunciando uma noite que haveria de chegar em poucos minutos. De repente, Miranda pareceu ver, despontando no alto daquela colina, uma visão fantástica. Uma enorme igreja, toda pintada em amarelo e branco, despontava envolvida por uma intensa luz. A Igreja então começou a oscilar, de um lado para o outro, como uma estranha e absurda miragem. Miranda assustou-se com aquilo e esfregou os olhos para ver se estava dormindo. Foi quando apurou o olhar e raciocinou que aquela visão fora um sonho repentino que tivera.
Miranda então sentiu, penetrando por suas narinas, o odor adocicado de um bolo de fubá.
(...)
Na manhã seguinte, todos os moradores da Cidade da Barra acordaram com um toque de corneta melódico e cadenciado, de uma leveza e limpidez total que encheu o ar em todas as direções possíveis. Era um som mágico, que fez a algazarra dos pássaros e dos macacos parar e silenciar por uns momentos. E que fez ainda com que os moradores daquela cidadezinha ficassem momentaneamente anestesiados, por ouvir tamanha e misteriosa beleza sonora. Aquele som melodioso, solitário, límpido e de extrema perfeição, impressionava e diferenciava o acordar daquela manhã na Barra. Um som que vinha do quartel da Guarda Nacional, emitido pelo novo corneteiro da tropa, o cabo Nepomuceno. Um mestiço forte e rude, que viera diretamente de Barcelos, chamado pelo coronel Inácio, conhecedor de suas qualidades de músico e corneteiro, para exercer esse ofício o mais rápido possível. Esta era a sua primeira manhã, de muitas outras que ainda viriam, principalmente manhãs de domingo, de um toque de corneta maravilhoso e inebriante.
Para muitos moradores, aquilo era algo de benéfico, após os anos de calamidade e tristeza que haviam se abatido sobre a cidade. Na propagação daquele som, vinha também um pouco de esperança e fascinação. O presidente Ferreira Pena, deitado em sua cama, abriu os olhos e ficou escutando aquela música de forma absorta e concentrada. Miranda conseguiu levantar seu alquebrado corpo e se deslocar até a sacada de sua varanda, tentando escutar melhor. Joana escutou aquilo e começou a sorrir quase como uma criança. O padre esfregou os olhos e apurou a atenção ainda sonolenta, na tentativa de compreender melhor o que começava a escutar.
- Hum! É uma música! E de corneta! - concluiu o padre, falando bem baixinho.
Foi então que - apaziguando todos os mortais que viviam naquela pobre cidade dos confins do mundo civilizado -, o corneteiro parou. Parou pelo simples fato de que cansou. Mas, por dezenas e dezenas de anos, a presença daquele som mavioso, emitido pelo corneteiro Nepomuceno, ficaria na memória de todos; passando de pai para filho e de filho para filho, durante gerações de manauaras. Até que, finalmente, devido à poeira do tempo que a tudo acaba sempre por sufocar, desapareceria de qualquer lembrança possível.
Mas logo, e sob um sol abrasador, a pequena cidade de Nossa Senhora da Conceição da Barra voltou ao normal. Seus armazéns abertos, seu mercadinho sendo abastecido e as funções administrativas do governo provincial sendo tocadas. E foi ainda, sob esses raios solares que se punham em todos os cantos abertos da cidade, que, em determinada hora, o tipógrafo Silva Ramos resolveu abandonar o seu local de trabalho para ir até à casa do presidente da Província. Queria pegar, quanto antes, os novos editais, proclamas e cartas convocatórias. Sabia que o presidente Ferreira Pena desejava que aqueles papéis estivessem impressos até o começo da próxima semana, pois o texto principal, em quase todos, rezava a convocação de todo o efetivo armado da Província do Amazonas para a batalha final contra Santo Cristo e seus homens.
No começo da tarde daquele dia, uma ventania açoitou violentamente todas as palmeiras e casinholas da cidade. Quando Miranda tentou ir até a varanda para respirar um pouco, uma chuva forte começou a cair repentinamente. Os pingos, daquela chuva tenebrosa dos trópicos, o impediram de continuar a colocar o pescoço para fora. Foi tudo muito rápido que Miranda resolveu recolher-se a seu quarto e esquecer qualquer tentativa de saída. Encostou-se em uma das paredes e ficou pensando nos documentos convocando os militares para uma nova batalha. Miranda sentiu medo, então. “Logo ele, que nunca sentira medo de nada”, pensou.
- Esta cidade é o inferno! – rosnou para quem estivesse por perto escutasse.
Enquanto nas pobres casas mal ajambradas daquele lugarejo inóspito a população tentava se proteger das gotas fortes e úmidas de uma tormenta tropical, um barco de passageiros, chegando justamente àquela hora, passava por sérias dificuldades no rio sob a fúria das águas e do vento. Seu barqueiro tentava atracar a duras penas. Quando finalmente conseguiu aportar, do barco começaram a sair diversos passageiros, que logo foram se posicionar debaixo de uma cobertura ali existente. Entre vários indígenas aculturados e alguns comerciantes e mascates, saiu um homem alto e de vasta cabeleira, vestido com uma enorme capa preta que lhe chegava quase aos pés. Trazia consigo apenas um pequeno alforje com seus pertences e um saco com algumas ferramentas. Seu porte avantajado logo se destacou em meio à escuridão.
O homem então perguntou se alguém conhecia o padre Joaquim e se ele se encontrava na cidade. Obtendo resposta afirmativa de alguns pescadores, foi guiado por um molecote na subida do barranco em direção ao velho seminário.
A caminhada, embora dificultosa devido à chuva e à lama escorregadia, não demorou muito. Logo, o homem estava em frente à porta principal do seminário.
- Obrigado, menino - disse, despachando o molecote. - Cheguei aonde queria - comentou.
As batidas na porta do seminário seguiram uma cadência ritmada como se fossem um código. O padre acabara de deitar-se e ainda estava de olhos abertos quando escutou aquilo. Levantou-se imediatamente, intrigado e curioso por quem poderia ser àquela hora e naquelas condições. Quando abriu a porta, segurando uma vela em um castiçal, deu logo de cara com o rosto redondo e barbudo de um homem extremamente alto e de aspecto jovial.
- Boa noite, padre! - disse o homem em direção ao vigário, sorrindo. - Sou Francisco Canejo, sobrinho do padre Canejo - completou a apresentação. Lembras daquele rapazola que foi para o Maranhão estudar?
- Francisco!? Sim! Lembro! - exclamou padre Joaquim, atônito pela chegada repentina do sobrinho de um padre muito amigo seu. - Chegastes agora? - perguntou de imediato, ainda bastante surpreso.
Francisco esfregou as suas botas em uma pedra, tentando limpar parte do barro que havia grudado e respondeu.
- Venho do Maranhão, padre ... Viagem longa e cansativa ... Posso entrar?
- Ah! Claro, claro!
Padre Joaquim, vendo a situação daquele jovem, falou.
- Vejo que estás muito molhado. Mas vamos, entre! Tire essa roupa encharcada e se instale em um de nossos quartos.
- Trouxe pouca coisa - observou, Canejo, enquanto retirava a casaca.
Os dois então sorriram um para o outro e apertaram-se as mãos. Padre Joaquim indicou-lhe o local de seu quarto, levando-o por um corredor.
- Venha por aqui - disse. - Mas que enorme surpresa, meu caro Francisco; você aqui! - completou. E como está a vida no Maranhão?
- Muito confusa devido aos últimos acontecimentos - disse Canejo.
- Que mal lhe pergunte - continuou o padre -, que vens fazer aqui nesta lonjura de mundo, homem? - Sair do Maranhão e vir para esta cidade tão pequenininha - disse ainda, perplexo. Aqui não acontece nada de importante há anos, homem. Só desgraças.
- Soube que querem construir uma igreja aqui - observou Canejo.
- Chegastes na hora certa - continuou o padre, enquanto puxava uma cadeira para o jovem construtor sentar-se. - A igreja ainda não saiu do papel que esbocei pobremente - ironizou o padre. - E, é claro, ela será a primeira e grandiosa obra em pedra e ornada de símbolos nessas paragens. Será a nossa Matriz de Nossa Senhora da Conceição. Não vejo a hora de vê-la subindo em direção ao céu. Toda gloriosa! - continuava o padre a falar, empolgando-se sobremaneira.
- Ainda não começou a ser construído nada? - perguntou Canejo, aparentemente preocupado.
- Está apenas em meu esboço tosco na gaveta de uma das mesas, do nosso presidente da Província. À espera de dinheiro e de trabalhadores, é claro. Mas a cidade está precisando deles com uma certa urgência. Não soubestes? Os indígenas e escravos que poderiam trabalhar fugiram da cidade, atraídos pelos delírios de um homem que se diz santo e que vive no meio do mato em rebelião armada.
- Andei trabalhando na construção de cortiços e residências particulares - começou a explicar Canejo. - Mas também desenho e pego no pesado - completou. Pedras, madeiras e todos os artefatos de construção.
- Que bom saber disso; e de que vais nos ajudar a construir a nossa esperada e gloriosa igreja Matriz - disse o padre, satisfeito com a chegada de uma pessoa conhecida e tão necessária à obra.
- E com a ajuda dos maçons - observou Canejo, meio enigmático e olhando firme na direção do padre.
Por um instante o vigário pareceu assustar-se com aquelas palavras. Não esperava por aquilo.
- Como? - perguntou, fazendo-se de desentendido. - A maçonaria? Como assim? - insistiu.
- Pertenço à maçonaria, padre - revelou Canejo. - E é um dos motivos de eu estar aqui - fez observar.
O padre emudeceu, não acreditando no que escutara.
- Falemos baixo, irmão; as paredes aqui na Barra têm ouvidos e as bocas são tagarelas e fofoqueiras - cortou o padre, pedindo segredo. E mudou de assunto. - E teu pai? E teu tio?
- Estão bem - respondeu o jovem construtor.
- Que bom! - exclamou padre Joaquim - Mas enquanto a grande obra não começa - retomou o assunto -, bem que poderias nos ajudar. Estamos precisando de uma melhoria neste forro do seminário. Está todo carcomido pela umidade.
- Claro! - respondeu Francisco Canejo, sentindo-se satisfeito com aquela acolhida e querendo pagar de alguma forma. - Muito obrigado, padre - agradeceu, com um cumprimento específico dos maçons. Farei qualquer coisa para pagar esta minha estada aqui.
(...)
Poucas pessoas ainda circulavam pelas ruas naquela manhã quando Francisco Canejo resolveu sair para ver em que estado se encontrava a cidadela que deixara há mais de quinze anos. Tomou rapidamente uma caneca de mingau, conheceu os que viviam no seminário e, se despedindo do padre Joaquim, vestiu sua casaca, colocou o chapéu e saiu, pisando a rua enlameada que passava em frente ao seminário. Seus olhos imediatamente se desviaram para o imenso rio que passava ao largo. Após ficar um bom tempo parado observando aquele cenário aberto, Francisco resolveu descer até o mercado. Um vento forte quase levou o seu chapéu enquanto descia. A superfície líquida do rio rebrilhava, tocada pelos raios do sol constante. Barcos aproveitavam o vento insidioso e saíam em busca de outras plagas. Uma grande embarcação estava ancorada silenciosamente a dada distância da praia. Quando chegou ao mercado da Ribeira, Francisco não pôde deixar de maravilhar-se com aquela profusão de peixes de todos os tamanhos; das frutas coloridas e apetitosas; das ervas e dos tachos acondicionando gorduras. Outra coisa, que ele notou, foram os rostos alegres daqueles indígenas e mestiços. Todos aos gritos, tentando chamar a sua atenção e vender alguma coisa. Francisco então voltou o seu olhar para ver o vilarejo daquele ponto onde se encontrava. O aspecto geral era de total decadência e esquecimento. Para os olhos de Francisco, aquele povoado parecia manter-se precariamente. Mas havia também uma dignidade toda especial, que exalava daquelas casas e barracos pobres, sobressaindo-se decididas em meio a uma floresta exuberante. Francisco começou a caminhar e, em determinado instante, parou um transeunte e perguntou sobre os lugares daquela cidade. Foi então que ficou sabendo de alguns nomes esquisitos, que haviam sido dados para algumas das ruelas trôpegas e tortuosas. Travessas que adquiriam nomes religiosos, como a travessa de Deus-Padre e a de Deus-Espírito Santo. Embora tivesse sabido da crise que havia baixado naquele lugar, uma placidez bucólica, que impregnava o ar para onde quer que ele andasse, muito o contentou.
E o restante da quela manhã, na Barra, transcorreu então um pouco mais silenciosamente. Os cochichos que porventura acontecessem eram apenas na direção de indagações e imaginações sobre quem poderia ser aquele estranho que aparecera na cidade e andava indagando sobre quase tudo. Além de muito alto, o homem dizia apenas que chegara do Maranhão, na noite anterior, e estava querendo conhecer a cidade em todos os seus recantos.
Logo após o almoço, a hora da sesta tomou conta da cidade da Barra, transformando o que já era silencioso em sepulcral. A cidade era um cemitério de pessoas, preguiçosamente estiradas em suas redes e camas. Até os pássaros e os macacos, espalhados pelas árvores da floresta ali perto, pareciam estar concordando com o silêncio geral. Devidamente instalado em sua casa, o presidente Ferreira Pena fumava o seu fumo vagarosamente. Ocasionalmente tomava um gole de sua garrafa de vinho. Em sua cabeça passavam mais de mil pensamentos. Ferreira Pena já sabia que no próximo mês as chuvas deveriam estancar. Um período de estiagem e muito sol determinaria, então, a hora de todos os militares, reunidos da província, iniciarem o ataque ao vilarejo rebelde de Santo Cristo. Fazer prevalecer a força do Império. Mostrar a esse homem a verdade das baionetas e espadas. Tudo e todos já estavam prontos para o cerco e ataque final ao povoado. “Esperar penas as chuvas estancarem de vez”, pensou o presidente.
(...)
A batalha final contra Santo Cristo finalmente pode ter início no dia 12 de setembro de 1854 e durou vinte e sete dias, tal a resistência dos revoltosos. Segundo os escritos do tipógrafo da Barra, o senhor Silva Ramos, que, autorizado pelo governo provincial em acompanhar essa última incursão militar, acabou por escrever um livro sobre tal batalha. Revelando que a refrega foi sangrenta e cruel sobre todos os aspectos. Segundo o relato de guerra, anotado por Silva Ramos e as observações dos sobreviventes de ambos os lados, abaixo descritos, no final da batalha, o povoado de Santa Isabel ficou salpicado de centenas de cadáveres e feridos, com o fogo e a fumaça de incêndios localizados crepitando ao redor.
... “A investida contra o povoado dos revoltosos, sob o toque do novo corneteiro Nepomuceno, aconteceu a partir de duas vertentes. Sob o comando do coronel Ignácio Corrêa de Vasconcelos, as forças reunidas da Guarnição da Província, num total de quinhentos praças e cem guardas nacionais, fortemente armados, cercaram o povoado. O plano de ataque, urdido em conjunto pelo presidente Ferreira Pena e seu alto comando, dividiu as tropas em duas colunas de trezentos homens cada, sob o controle imediato dos tenentes José Barbalho e Clistenes do Amaral. Cada coluna, por sua vez, foi subdividida em três brigadas ligeiras de cem homens cada. A coluna de Barbalho foi a primeira a enfrentar as armas dos homens de Santo Cristo, no amanhecer de 13 de setembro. Os primeiros homens a tentarem ultrapassar a fortaleza do povoado de Santa Isabel se deram mal, sendo rechaçados por cerrada fuzilaria e uma chuva de flechas. As tropas imperiais tiveram, nessa primeira investida, cerca de vinte baixas e então recuaram e se acantonaram para pensarem em uma melhor estratégia de enfrentamento. Todos os soldados imperiais perceberam que a grande diferença a favor deles estaria na chegada dos dois canhões, destacados para os próximos dias. Já os homens de Santo Cristo estavam duplamente armados e dispostos a uma sensível resistência. Durantes esses dias cruéis e decisivos, a batalha de Santa Isabel foi renhida e com demonstração de muita disposição por ambas as partes. Quando os canhões chegaram e o bombardeio começou, apesar dos dois enormes buracos feitos na fortaleza, as lutas não se desenvolveram logo de imediato, como deveriam ser. A estratégia do coronel Inácio, já sabedor, devido à campanha anterior, de que uma invasão ao povoado, com um combate corpo a corpo, seria desastroso para as suas tropas, foi a de um continuado bombardeio de desgaste, com os dois canhões chegados, em cima da cabeça de Santo Cristo e de um corte das possíveis comunicações do povoado, em busca de abastecimentos, tanto de víveres, quanto de prováveis munições. O coronel queria ganhar essa batalha, primeiro com o estrangulamento, e só depois com uma invasão. Quanto a Santo Cristo, seus pensamentos eram de resistir até a morte. Ele próprio comandava a resistência, delegando ordens em defesa e crença nos poderes de Deus. Consta que as tropas imperiais, apesar de abrirem dois enormes buracos na fortaleza, que cercava o povoado com os tiros dos canhões requisitados, não conseguiram avançar e invadir o povoado, sendo rechaçados vigorosamente pelos homens de Santo Cristo, que pareciam bem treinados e em todos os lugares possíveis. Flechas e balas desciam sobre as cabeças imperiais de forma segura e certeira, provocando o recuo e proteção imediata dos militares. A única estratégia possível era o contínuo estrangulamento do abastecimento e o continuado fustigar com tiros de canhão no interior da fortaleza. O que o coronel ordenou e fez por alguns dias. Mas, outro grande problema para as tropas do império seriam os movimentos contrários. Eles não seguiam uma lógica de guerra como deveria ser. Eram mais ações armadas, e que, durante a noite, atingiam o seio das tropas acantonadas. Grupos pequenos de fanáticos que vinham, disparavam seus rifles e flechas e fugiam pelo meio da selva escura, provocando a desordem de atitudes no meio das tropas. Até que, durante uma semana, tudo ficou em silêncio. Foi quando então o coronel Inácio, desconfiando que as munições e provisões dos rebeldes houvessem acabado, ordenou a invasão imediata do povoado de Santa Isabel. Era o dia 7 de agosto daquele ano, da graça do Imperador.
O campo de batalha então se fez sobre o cansaço e a exaustão do povoado. Entre fogos, gritos de revolta e sangue de alguns, o combate decisivo eclodiu. Cartuchos detonados; flechas e espadas fulminando corpos que encontravam pela frente e a fumaça subindo nos quatro cantos daquele campo. Essa era a visão geral da batalha final do povoado de Santa Isabel. Todos os homens de Santo Cristo lutavam desesperadamente. Mas a batalha era cruenta e difícil para todos. Peitos de revoltosos eram trespassados por espadas imperiais. Índios e caboclos, usando bordunas e facões, matavam militares surpreendidos. E no meio desses, ainda havia os estonteados que recuavam ou atiravam a esmo. Em ambos os lados, o ódio fazia cerrar dentes e gestos. Mas logo aqueles pobres homens sentiram-se encurralados e sem poder de reação. Santo Cristo, que se encontrava quase que impassível na porta de sua. Deram-se as mãos e começaram a rezar em uníssono. O coronel Ignácio, vendo que os principais líderes da revolta haviam se refugiado naquele local, pediu ao seu corneteiro que desse o toque de recuo. Quando os militares saíram do interior do povoado, o coronel ordenou que os últimos tiros dos canhões atingissem aquela construção esquisita, localizada no centro do povoado. E foi o que aconteceu. Logo uma zoada de assovios dos projéteis, lançados pelos canhões, caíram sobre aquela igreja e sobre os homens que lá haviam se refugiado. Santo Cristo foi atingido pelos estilhaços e pedaços da construção. O fogo então subiu e crepitou na maior intensidade naquele local. Até que tudo cessou repentinamente, restando apenas o cheiro de enxofre e daquela fumaça dos incêndios propagados. Uma bandeira branca então assomou em meio à fumaça. A princípio, seus movimentos eram lentos e indecisos, mas logo se agitaram nervosamente. Não havia mais nenhum ruído de batalha; apenas o crepitar dos fogos dos incêndios. E o desabar final da construção. Estava feita a vitória das tropas da Província do Amazonas contra o movimento messiânico dos fanáticos de Santo Cristo. Os soldados deram então início às prisões dos sobreviventes. Entre indígenas amedrontados e escravos resignados, todos foram amarrados por fortes cordas e “convencidos” a voltarem para a Vila da Barra e esquecerem tudo, reintegrando suas famílias e, é claro, trabalharem nas importantes obras públicas que seriam necessárias fazer “dali para a frente”.
Capítulo XI
Sentado em uma das mesas externas do boteco do velho Matos, bebericando e fumando para passar o tempo, Francisco Canejo procurava não pensar em mais nada sobre aquela igreja matriz. Como era uma sexta-feira e o tempo abafado, prenúncio de novas chuvas, aconselhava a isso, instalou-se confortavelmente em uma das cadeiras daquele boteco e relaxou, apenas apreciando aquela paisagem e as figuras que por ali passavam.
- E como está a situação geral desta cidade? - perguntou o construtor, procurando obter mais informações do dono do estabelecimento.
- Não sabes o que houve? - perguntou de volta o dono do boteco.
- A batalha contra aquele homem!?
- A derrota daquele Santo Cristo e o retorno de parte dos trabalhadores à cidade da Barra!
- O que tem isso?
-Todos passamos a acreditar mais no desenvolvimento de nossa cidade.
Canejo percebeu então que sua chegada àquela cidade se inseria nesse processo de mudanças que se iniciara. As forças conjugadas de todos se direcionavam, agora, para os trabalhos nas obras públicas. E ele ficara então sabendo ainda mais sobre tudo. Com os trabalhadores braçais, uma série de necessidades de obras urgentes começou a sair, senão dos papéis de planejamento do governo provincial, pelo menos da boca de seus governantes. Ferreira Pena, que depois dessa vitória alcançada, resolvera que já era chegada a hora de se afastar dessa “maldita terra inculta”, foi um desses governantes. Quando, no dia 11 de março de 1855, uma segunda-feira de sol, ele abandonou o cargo e o vice-presidente Miranda assumiu, os dois conversaram no gabinete da casa presidencial sobre as possibilidades abertas para a Província. Ferreira Pena passou então todas as informações possíveis para que seu vice-presidente ficasse a par do que enfrentaria e do que seria possível fazer.
- Existe todo um trabalho a ser feito nesta cidade de Nossa Senhora da Conceição da Barra - dizia Ferreira Pena para um Miranda aparentemente circunspecto e concentrado. - Deixo esta cidade pelo menos em paz, Miranda - afiançou. Deves assumir logo e tocar para frente o máximo possível dessas obras que estão paradas. Tem a cadeia! A Casa da Câmara e não podes esquecer que a recuperação do Hospital Militar, na ilha de São Vicente, é uma das nossas prioridades. Já o Edifício dos Educandos Artífices está praticamente terminado. E os filhos maiores de idade, dessa gente do Santo Cristo, devem ser imediatamente levados para lá. Compreendes?
- Perfeitamente - respondeu Miranda. - Mas e a nossa igreja Matriz? - perguntou o vice-presidente. E a saúde na Província? Soube que existe um relatório dos nossos médicos militares sobre a situação sanitária e...
- É, sim, recebi este relatório - recomeçou a falar Ferreira Pena, cortando a Miranda. - Mas, com essa confusão toda que se formou, só há poucos dias é que tive tempo de ler - alertou em seguida. Passarei ao senhor.
- Mas já podes me adiantar alguma coisa? - perguntou Miranda de volta, demonstrando interesse.
- Posso sim - exclamou Ferreira Pena. - Veja o caso do doutor Moreira, nosso médico do exército, e do professor Portes, que andaram por essas localidades todas da Província e encontraram várias aberrações sanitárias - continuou a explicar o presidente.
- E o que aconteceu? - indagou Miranda, enquanto procurava uma cadeira para sentar-se.
Ferreira Pena sentou-se em outra poltrona e pigarreou um pouco, antes de retomar a conversa.
- O que acontece é uma verdadeira calamidade - disse. - Existem febres e doenças grassando em todas essas plagas - continuou. Febres endêmicas atingem a região do Alto Madeira e ao longo do Rio Negro. O que muito deve nos preocupar. Além disso, a população vem sofrendo de disenteria, tosse crônica, coqueluche e lepra.
- Meu Deus! - exclamou Miranda.
- A situação é grave - disse Ferreira Pena. - Na Barra, Vila Bela e Maués há casos de angina. E temos purupuru no Purus.
Miranda então completou a informação:
- O que sei, e posso afirmar, é que o obituário aqui na Barra aumentou muito - afirmou. - E que não foi só por causa dessa batalha - disse, rindo.
- É, eu sei - assentiu Ferreira Pena. - Mas o que me preocupa é se tivermos aqui um surto de cólera mórbus - ressaltou. Ainda mais agora que precisamos aproveitar essa paz conseguida para reconstruirmos a cidade. Fiquei sabendo que em Belém ela já está fazendo vítimas. Se a colerina chegar à Barra será o caos. Temos que ter pelo menos um hospital funcionando.
- E uma igreja com seus alicerces levantados - comentou Miranda.
- Sim, sim; a Matriz! - completou Ferreira Pena.
Miranda ajeitou-se um pouco em sua cadeira, tossiu e disse.
- Sabe o que o povaréu anda falando por aí?
- Diga-me - quis saber Ferreira Pena, meio contrariado.
- Que essas desgraças todas, acontecidas na Barra, são devido a não termos a nossa Matriz sequer com os alicerces iniciados.
Ferreira Pena olhou bem nos olhos de Miranda e não pôde deixar de rir.
- Absurdo! Ignorância! - disse em seguida. - Uma coisa não tem nada a ver com a outra - completou.
Ferreira Pena então se levantou, suspirou fundo e aproximou-se lentamente de uma das janelas da casa presidencial. Por uns momentos, fitou a natureza lá fora. Mas, repentinamente, virou-se na direção de Miranda, e disse:
- Essa igreja terá que ser construída, sim. Fiquei sabendo que chegou aqui à Barra um jovem oficial de pedreiro, conhecedor de laminados. É um tal de Francisco Canejo. Fiquei sabendo também que é formado em Arquitetura e Arte. Contratei-o então para fazer logo a planta da igreja Matriz. Ele e o secretário Wilkens de Matos vão dar início a esta obra. O fato é que irão iniciar esta planta da igreja de qualquer jeito e fazer o levantamento das necessidades do material a ser empregado. E além de tudo, estão chegando da Corte uns dezesseis a vinte operários, trazidos pelo major Rozwadowski.
- E o dinheiro para pagar tudo isso? - perguntou Miranda.
- Está vindo alguma coisa e o resto aconselho angariar através da ativação de uma loteria - respondeu Ferreira Pena.
Miranda então, vendo que as coisas da Província estavam nesse pé, só teve o ensejo de propor um brinde de conhaque a um ex-presidente que saía, senão com as contas pagas e as obras resolvidas, pelo menos com a certeza de uma vitória saborosa contra as forças revoltosas. Quanto a ele, sabia que não duraria muito naquele cargo, pois, logo seria devidamente substituído por outro presidente provincial, indicado pelas cortes imperiais.
Quanto às obras iniciadas e as terminadas, uma ainda monopolizava a atenção e o desejo maior de todos os moradores e autoridades daquela pobre localidade, a construção da tal nova Igreja Matriz. Tanto isso foi um desejo almejado, que, em 4 de junho do ano anterior, e sob as bênçãos do Império e do governo-tampão de Manoel Gomes de Miranda, a Assembleia Legislativa Provincial do Amazonas despendeu a quantia de $3:00000 réis e instituiu dez loterias para arrecadar fundos para as obras da Matriz da capital. Fato ainda completado quando, a 22 de junho desse mesmo ano, o governo da Província, na pessoa de seu presidente, conseguiu despender quatro contos de réis anualmente para tão nobre e necessária edificação.
- Mandarei imprimir então, imediatamente, e fazer correr o mais rápido possível esta lei - disse Miranda ao secretário Wilkens de Matos.
Magro e com uma cabeleira e barbicha ruivas, o secretário Wilkens sempre chamava a atenção. O olhar penetrante denotava sua extrema objetividade em resolver problemas. No momento, encontrava-se na sala do presidente discutindo sobre a planta da igreja.
- Pois é isso, excelência, temos que ter dinheiro em mãos quanto antes, para podermos levantar essa obra - disse.
Miranda também riu, satisfeito com aquele início promissor de seu governo, e comentou.
- Meu caro Wilkens, deves também entrar em contato com o vigário da paróquia, padre Joaquim, para podermos definir logo esse local e essa planta definitiva da igreja.
- Mas o local não foi aquele já determinado? - perguntou Wilkens de Matos. - Não será no terreno onde funcionou a velha Olaria? - continuou.
- Sim, sim; será ali, sim - respondeu Miranda. - Mas é necessário fazer um levantamento melhor dos limites exatos - explicou. Deves procurar também, por meio de padre Joaquim, um jovem pedreiro que está morando no seminário, de nome Francisco Canejo. Será este jovem que irá traçar a planta definitiva da igreja. E quero que o senhor determine a elaboração de uma igreja com linhas sóbrias e simples. Em todos os sentidos, entendeu?
- Pois não, excelência - acordou o secretário. - Irei ter imediatamente com essa pessoa - completou.
A tarde daquele dia já caía naquela localidade, quando Wilkens de Matos se fez anunciar no seminário. Padre Joaquim foi quem atendeu as suas batidas na porta.
- Secretário! Que satisfação enorme esta sua visita! - exclamou padre Joaquim, assim que deu de cara com o rosto magro de Wilkens de Matos. - Que bons ventos lhe trazem até a nossa modesta casa? - disse ainda, fazendo uma reverência.
Wilkens retribuiu a acolhida com um sorriso e um afetuoso abraço em padre Joaquim.
- Venho pela nossa Matriz que precisa ser levantada quanto antes - disse. - Precisamos levantar essa casa de Deus - continuou, enquanto adentrava uma pequena saleta do seminário que servia para receber os visitantes.
- Claro, claro! Mas entre e fique à vontade - disse um padre Joaquim esfuziante por tão aventurado comunicado vindo da parte de uma autoridade oficial.
- Precisamos começar essa obra, padre - retomou Wilkens de Matos, enquanto retirava o seu chapéu, em respeito ao sacerdote. - É chegada a hora de unirmos esforços nesse sentido e vou precisar da ajuda de todos os que puderem ajudar - fez observar. O senhor pode chamar o pedreiro de nome Francisco Canejo, que está hospedado aqui no seminário? Tenho que falar com ele sobre o projeto contratado de desenho da planta.
- Claro, o Francisco Canejo, vou chamá-lo - disse o padre. - Um jovem que me parece bem capaz e que nos apareceu na hora certa - saiu, comentando, seguido pelo secretário. Está a fazer algumas reformas no seminário como pagamento por sua estada. Endireitou o nosso forro, que se encontrava combalido e cheio de goteiras. Ótimo profissional. Vou apresentá-lo ao senhor.
Dito isso, o padre Joaquim puxou o secretário pelo braço, levando-o até um pátio interno do seminário. Encontraram o jovem Canejo, vestindo um longo avental e segurando uma pá de pedreiro. Estava de cabeça baixa, absorto em um trabalho de misturar uma massa. Seus cabelos longos estavam em desalinho e caíam por cima de seu rosto, tapando parte da face. Sem ainda notar a presença dos dois homens que se aproximavam, Canejo deixou a massa de lado e foi na direção de outra mesinha, onde se encontrava um papel. Outro homem, que parecia um trabalhador às ordens de Canejo, aproximou-se e perguntou-lhe alguma coisa. Quando Canejo virou-se para apontar em uma direção, notou então a figura do padre Joaquim se aproximando com o secretário. Imediatamente parou o que fazia; enxugou o suor do rosto e tentou ajeitar o cabelo um pouco mais.
- Francisco! - chamou-lhe a atenção, padre Joaquim. - Quero lhe apresentar uma autoridade local que muito quer o conhecer - continuou a apresentação, enquanto se aproximava. Este é o nosso secretário da Província, responsável pelas obras em geral da nossa cidade.
Wilkens de Matos aproximou-se de Canejo com um sorriso amistoso estampado no rosto. Francisco Canejo deixou a pá de pedreiro em cima da mesa, limpou a mão no avental e cumprimentou o secretário.
- Estou às ordens, excelência - disse.
- Meu rapaz! É um prazer enorme tê-lo entre nós neste momento de tantas obras a serem erguidas - comentou Wilkens de Matos.
Canejo balançou a cabeça, reafirmando o que escutara.
- Muito fiquei sabendo sobre os teus predicados e profissão - continuou o secretário. - Pareces o homem indicado para ajudar-nos a levantar a nossa igreja Matriz dos alicerces - observou, com um sorriso de satisfação no rosto.
- A igreja! - exclamou Canejo, alegre.
- Sim, a nossa igreja - reafirmou Wilkens de Matos.
- É a glória e a salvação - comentou padre Joaquim.
- Mas em que posso lhe ser útil? - perguntou Francisco Canejo.
- Serás o tracejador de sua planta e dirigirás os serviços gerais - respondeu Wilkens de Matos, olhando firme nos olhos de Canejo.
Canejo só faltou gritar de imensa alegria por tão grande honraria.
- Meu Deus! Pensei que o presidente me quisesse apenas para oficial de pedreiro - comentou surpreso.
Padre Joaquim sorriu e fez uma observação, olhando na direção de Canejo.
- Será a obra da tua vida.
- E quando começo? - perguntou Canejo, virando-se para o secretário.
- Agora! Amanhã! Já! - exclamou o secretário, empolgado. - Deves idealizar uma Igreja não muito grande, mas suficientemente bela - continuou. Uma igreja econômica e de linhas sóbrias, pois o governo provincial não tem dinheiro para tudo o que pretende. Faremos até uma loteria para arrecadarmos dinheiro para essa construção.
Todos então riram ao mesmo tempo. Nunca Francisco Canejo poderia esperar que aquilo lhe acontecesse. “Onde já se viu desenhar a planta e dirigir as obras de uma grande matriz”, pensou. Canejo então pegou uma folha de papel e um lápis e, ali mesmo, na frente daqueles homens, começou a esboçar o desenho tosco de uma igreja. Wilkens de Matos então procurou orientá-lo no que desejava que fosse feito.
- Deve ter vinte e quatro arcos, doze de cada lado - dizia. - Com duas torres laterais para os sinos - continuava a explicar um entusiasmado secretário.
O lápis corria pelo papel que aparecera, formando as linhas de uma igreja.
- E a fachada? - perguntou Canejo.
- Deve ter três portas - disse Wilkens. - E as escadarias, em número de duas, como se fossem dois braços abertos, devem chegar até o rio - completou.
Canejo então, alheio aos dois homens, começou a desenhar rapidamente pelo papel. Pegou uma régua, tracejou algumas linhas e então mostrou.
- Bom; é isso aqui - mostrou, depois de um tempo, o papel onde estava desenhada uma igreja nos moldes indicados por Wilkens de Matos.
- É isso mesmo! - exclamou o secretário. - Veja, padre - disse, puxando o padre de lado.
- Meu Deus, vai ser linda! - exclamou o vigário.
Francisco Canejo sorriu.
- Mas ainda preciso ver e conhecer melhor o local para poder dimensionar melhor a base, a altura e a largura – disse o construtor. - Assim como o material a ser usado - continuou. E precisamos limpar logo o terreno.
- Já está sendo capinado - disse Wilkens. - O local da igreja é aqui perto, no alto de uma colina, voltada para o Porto das Catraias - observou.
- Podemos ir até lá? - perguntou Canejo, eufórico.
- Claro - respondeu Wilkens. - Vamos então – completou em seguida, rindo.
Francisco Canejo nem mudou de roupa, tal o desejo de ver o local onde seria erguida a igreja. Logo iniciava a subida, com um padre Joaquim esbaforido e um secretário proficiente, da colina da Olaria velha. Francisco levava na mão um bloco de anotações e uma trena.
- Francisco! Padre Joaquim! - gritou Wilkens de Matos, assim que chegaram ao alto do outeiro. - Venham ver a visão que os fiéis terão daqui deste local - pediu.
Francisco e Joaquim olharam na direção do rio que passava em frente à colina.
- É realmente muito bonito - comentou Francisco Canejo - Mas, se o senhor me permite, secretário, acho que a frente da igreja deve ficar voltada para lá - observou o oficial de pedreiro, apontando para o Porto das Catraias. E com uma rampa de acesso que leve diretamente, todos os fiéis e devotos, a uma entrada principal. Acho que, de frente para lá, o pôr do sol, o qual é sempre magnífico aqui, a iluminará de frente.
O engenheiro Wilkens de Matos pigarreou ligeiramente. Não esperava por aquela observação. Padre Joaquim, percebendo o constrangimento do secretário, tentou consertar.
- Mas Francisco, todas as nossas igrejas, segundo reza a tradição, têm que estar voltadas para o leste - disse o padre. - Ou, senão, um pouquinho para o sul, como neste nosso caso. E voltada para o rio como uma verdadeira sentinela da fé - completou.
Francisco Canejo continuou.
- O sol nasce a leste, padre, e não se pode vê-lo devido à selva fechada.
- Sim, eu sei - assentiu padre Joaquim, tentando ser delicado.
- Então, qual o motivo de não construirmos essa igreja voltada para o oeste? - indagou Canejo. - Onde o nosso sol morre todos os dias - explicou, tentando convencer os dois homens. Este céu vermelho, tinto de sangue, bem que poderia simbolizar também a morte de Cristo na cruz. E, além disso, o povo que vem para sempre aporta a partir dessa posição da colina. Logo ali embaixo.
Wilkens de Matos olhou para os dois homens discutindo ali a seu lado e disse, tentando encerrar a discussão.
- O presidente quer que a igreja seja construída nessa direção, de frente para o rio e um pouco virada para o sul, pelo simples fato de que o odor do mercado, quando o vento da manhã bate, não chega aqui.
Canejo parou de pensar, quase não acreditando no que escutara. Padre Joaquim aquiesceu, respirando fundo.
- Meu rapaz, mostre aquele desenho novamente - continuou o secretário Wilkens, assumindo sua autoridade.
- Sim, aqui está - respondeu Canejo, enquanto puxava do bolso de seu casaco o papel dobrado, com o esboço desenhado da igreja.
- Deixa-me ver - disse Wilkens de Matos, estendendo a mão. - Mas a nave está muito grande - comentou em seguida, identificando um problema.
Francisco Canejo então lhe explicou os pormenores e detalhes técnicos da construção de uma nave maior.
- Desenhei esse tamanho pensando em uma capela-mor de cinquenta palmos em um quadro aberto; com isso teríamos uma ampla disposição de serviços e circulação para os sacerdotes - explicou. - Veja aqui - disse Canejo apontando freneticamente os desenhos e posições. São duas sacristias laterais e devem ter cinquenta palmos sobre trinta. E eu vejo essa igreja com uma nave que vai desde o cruzeiro até a porta principal, com mais ou menos cento e vinte palmos sobre oitenta e seis de largura. Com isso e mais dois andares, com doze arcos abobadados, teremos uma nave para a disposição de inúmeros bancos. Que achas?
- Hum? Não sei - resmungou Wilkens de Matos. - A princípio pode estar bom - disse em seguida. Talvez faltem alguns detalhes e pormenores que veremos depois. Faça o seguinte, seu Francisco. Coloque tudo isso em um traçado mais elaborado e levante um frontispício com três portas de entrada e apenas uma torre sineira. Com isso tudo é que negociaremos com o presidente o valor de seu pagamento.
Padre Joaquim sorriu e Canejo não pôde conter em si todo o contentamento que sentiam. Os três homens então falaram mais algumas coisas e selaram um acordo que, se não era definitivo, pelo menos parecia bem propício.
- Padre - resolveu falar Canejo, assim que o secretário saiu -, vou precisar de sua ajuda no que diz respeito à arquitetura final desta planta. - O senhor conhece muito sobre as catedrais, pelo que me mostrou - observou.
- Sim.
(...)
Corria o ano de 1858 e, a 10 de junho, trabalhadores finalmente começaram, em uma área de 15 mil palmos presumíveis, a desbastar o terreno um pouco acima de onde ficava a antiga olaria, entre a Rua Brasileira e as travessas do Equador e da Olaria, bem de frente para o rio. Ali seria erguida a nova e tão esperada igreja matriz do lugar. E quando a pedra fundamental foi lançada, às sete horas do dia 23 de julho, o “Estrela do Amazonas” noticiou o fato, desejando “louvores mil ao Excelentíssimo senhor Francisco José Furtado por começar a obra...” O diretor interino das obras públicas era o tenente-coronel João Wilkens de Matos e os trabalhadores, escravos e alguns indígenas, passaram a suar às bicas sob um sol inclemente de quarenta graus Celsius à sombra, para levantar aquela obra. Francisco José Furtado era o quinto presidente a ocupar o governo, substituindo Ângelo Thomas Amaral, que, por sua vez, substituíra Dias Vieira. Ambos os presidentes governaram por apenas alguns meses.
Decidido a permanecer no cargo por mais tempo que os demais, Francisco Furtado, um piauiense que em sua carreira política chegara a Ministro do Império, escolhera justamente o cônego Joaquim como seu vice-presidente, por saber de sua liderança naquele vilarejo e da grande ajuda que ele poderia emprestar ao seu governo. E padre Joaquim já estava nas ruas, e onde pudesse estar, continuando o seu contato e a sua atuação em prol do que estava sendo proposto. Naquela manhã ensolarada, ele e mais o projetista da obra, ainda não oficialmente contratado, Francisco Canejo, conversavam à sombra de uma jaqueira, no sopé do morro onde a igreja matriz começava a ser erguida.
- Finalmente estamos iniciando a grande obra desta província, não!? - comentou o vice-presidente.
- É um fato irreversível - concordou Canejo.
- Colocamos a pedra no local onde deve ser erguida a capela-mor e depositamos o cofre com as moedas, como reza a tradição - continuou padre Joaquim. - E a igreja deve ser levantada a partir de agora - reafirmou.
- Mas veja, padre, a média de escavações de terreno é de pouco mais de cem metros cúbicos por trabalhador - informou Canejo. - E como temos poucos e indisciplinados trabalhadores, a situação toda parece se arrastar - explicou. Esses africanos livres estão sempre embriagados e só trabalham quando estou presente. E eu não posso ficar aqui o dia inteiro.
- Mas existe um feitor para controlar isso - disse padre Joaquim.
- Que eles não obedecem a contento - completou Canejo. - A obra está só iniciando, padre - continuou. Muita coisa ainda acontecerá para que esta igreja apareça no horizonte.
- Devemos ter pulso firme em relação aos trabalhadores, senão nada sairá! - rosnou padre Joaquim. - Que se descontem então suas faltas nas jornadas de trabalho - finalizou, ordenando.
- Acredito que só haja uma maneira de conter essa gente e organizar melhor o início da obra - disse Canejo.
- Qual é? - perguntou o padre e vice-presidente da Província.
- Julgo indispensável cercar todo esse terreno que vemos aqui - explicou Canejo.
- Fechar o espaço da obra para que o trabalho desses africanos fique contido e controlado - concluiu, tentando achar uma solução.
O vice-presidente olhou ao redor; pigarreou um pouco; puxou toda a sua excrescência e cuspiu de lado. Na sua cabeça imperial circularam diversos pensamentos de como tirar proveito político e pessoal daquela questão. Sabia que o poder da igreja católica bem que poderia ser usado, agora que a situação na região estava mais calma, de uma forma que captasse, através daquela obra grandiosa que se descortinava, os recursos necessários. Mas também sabia que a influência fustigante dos maçons não o deixaria em paz, no que dizia respeito à arquitetura definitiva da igreja, com a compra dos materiais e laminados necessários.
Canejo, por seu lado, pensava principalmente sobre aquela oportunidade que lhe aparecera de projetar o seu nome, de simples pedreiro e mestre de pequenas obras, a idealizador de uma enorme igreja. Sabia que sua trajetória de vida não fora das mais fáceis e que, agora, não podia errar. Ajudaria a construir um sonho - “a sua primeira grande obra e talvez a mais importante” - com a ajuda da santa igreja católica, do governo imperial e sub-repticiamente, dos irmãos maçons.
- É isso mesmo; cercar e limpar - assentiu o vice-presidente.
Canejo despediu-se então do vice-presidente e ficou mais um pouco por ali, meditando. Sentia em suas veias que a obra em questão teria que receber muitos recursos e muito mais mão de obra para poder acontecer. Talvez demorasse anos, pensou. Ficara sabendo que, até o momento, a Província já gastara muito dinheiro em obras das mais diversificadas, e que ainda estava pagando os fornecedores e trabalhadores. O Hospital Militar de São Vicente havia sido uma dessas obras já concluídas que consumiram muitos recursos. Recentemente, também houve a entrega do edifício dos Educandos Artífices, não sem algumas dificuldades de arrecadação e pagamento. Portanto, pensava Canejo, a construção dessa igreja matriz enfrentaria problemas parecidos. O primeiro, ele desconfiava, seria o próprio pagamento da planta da igreja que ele traçara, obedecendo à solicitação do diretor de obras, Wilkens de Matos. Quando a terminou, percebeu que, apesar do traçado simples e econômico que imprimira à mesma, a obra demandaria custos fabulosos para uma administração como aquela. Mas Canejo já a tinha em mãos e procurou não pensar em problemas que não lhe diziam respeito. A sua grande questão seria tentar convencer as autoridades locais sobre onde deveria ser o frontispício da Matriz. Se com uma rampa de acesso, com a frente da igreja para o Porto das Catraias e para o pôr do sol, como ele queria; ou, se para o sul, de frente para o Rio Negro, como os homens do poder desejavam?
Mas, não muito longe dali, as autoridades constituídas e sagradas, da cidade de Manáos, comentavam a obra que Canejo pacientemente esboçava.
- É a planta que o Canejo desenhou? - perguntou o presidente Furtado, referindo-se ao desenho da igreja Matriz que o secretário Wilkens de Matos havia finalmente lhe entregue.
- Sim, excelência - respondeu o secretário. - É uma obra simples, mas que irá impressionar os fiéis da nossa cidadezinha - continuou, satisfeito.
- Deixa eu ver melhor - resmungou o presidente da província, demonstrando aborrecimento e um certo tédio. Suas mãos então aplainaram ainda mais o papel no tampo de sua mesa e ele pôde ver melhor a obra que se iniciava.
- Ele pensou em colocar a frente da igreja voltada para o Porto das Catraias, excelência - comentou o secretário, meio temeroso. - Disse que seria devido ao pôr do sol, simbolizando a morte de Cristo - observou, esperando a reação do presidente.
- Não! Quero a entrada dessa igreja bem longe daquela fedentina do Mercado que sobe quando o vento bate - rosnou o presidente. - Onde já se viu a missa sendo rezada e tendo que tampar o nariz por causa daquela banha podre das tartarugas, misturadas com as fezes daquelas aves nojentas - finalizou, fazendo uma careta de nojo.
- Foi o que pensei, excelência - observou o secretário.
- Diga a esse rapaz para fazer do jeito que mandei - concluiu o presidente, exercendo sua autoridade.
- Pois não, excelência - acatou o secretário. - E as escavações? Como estão indo? - perguntou o presidente, esquecendo o assunto anterior.
- A média de escavações no local está indo conforme o planejado - comentou o secretário.
Furtado pigarreou, olhou de volta para a planta e disse.
- Vejo aqui na planta que a capela-mor não vai ser muito grande.
- Não mesmo - assentiu Wilkens. - Mas o senhor pode perceber o equilíbrio das linhas das sacristias e colunatas - continuou Wilkens. Isso proporcionará à obra uma imponência. Será uma grande igreja Matriz! O olhar demonstrando imensa satisfação.
- E os trabalhadores? Como estão se comportando? - perguntou o presidente. O olhar severo.
- O senhor já deve ter visto a cerca e os ranchos que mandamos construir para conter esses trabalhadores - começou a explicar o secretário. - E, além disso, eles têm hora para entrar e hora para sair da obra - salientou. Tudo nos conformes e segundo o que Vossa Excelência ordenou.
O presidente da província então suspirou fundo, abriu a gaveta de sua mesa e tirou de lá um rolo de papel.
- Vejo aqui, neste relatório que me entregastes, que o custo da mão de obra e do material empregado está muito elevado - disse, friamente.
Wilkens tentou se ajeitar na cadeira.
- E que cada carroça que carrega as pedras - continuou o presidente - nos custa $1200; o alqueire de cal $2000, sem esquecer que os pedreiros estão os olhos da cara.
- Tudo é dispendioso, excelência - intercedeu Wilkens de Matos. E continuou: - Mas se quisermos ver essa igreja levantada, teremos que enfrentar não só esses custos elevados, mas também os nossos limites de paciência.
Furtado levantou-se preocupado. Sabia da importância daquela igreja e do que havia também nos cofres públicos. Mal a obra começara, e ele, como bom administrador de finanças que era, sabia que já teria que efetuar cortes nos custos que se apresentavam.
- Só de mão de obra - continuou o presidente - já temos um total de gastos de $248688 réis previstos para pagamento inicial. E eu então lhe pergunto, meu caro secretário - continuou -, como estão sendo usados esses trabalhadores e esses materiais empregados?
Wilkens de Matos coçou a cabeça, alisou o cavanhaque e respondeu:
- Cada oficial de pedreiro pode fazer por dia, em nove horas de jornada, sessenta palmos cúbicos de argamassa. Isso tudo dosando duas partes de cal, com três de barro. Assim temos um aproveitamento normal, no que diz respeito a essa parte delicada da obra.
O presidente então soltou um leve sorriso, e disse:
- Tu bem sabes que, na surdina, temos a promessa de ajuda dos nossos irmãos da maçonaria de fora.
- Sim, sei - respondeu Wilkens de Matos.
Furtado então circulou um pouco pelo gabinete, respirou fundo e perguntou.
- Esse Canejo é também maçom, não?
- É, mas veio do Maranhão - afiançou o secretário. - Mas ainda não sei se tem ligações com a Corte - completou indeciso.
- Com certeza está envolvido com os de lá da Corte - afirmou o presidente. - Fique de olho nesse senhor; pois pode nos trazer problemas, pelo visto - aconselhou. E fique de olho no vigário também. Temos que ter controle absoluto sobre esses dois, que estão à frente desta obra. Eles não podem saber de detalhes a mais do que já sabem.
- Está certo, excelência - concordou Wilkens de Matos.
Mas, por mais que os homens responsáveis pelo governo e administração daquela distante Província tivessem segundas e até terceiras intenções, além de desconfianças variadas face ao panorama político adverso e às finanças incontroláveis, a nova e grandiosa igreja de Nossa Senhora da Conceição ia se erguendo do chão. Pedra sob pedra e com o enorme sacrifício de todos, os alicerces e as paredes tomaram o rumo definido pelo presidente Francisco Furtado, apesar dos protestos velados do mestre-pedreiro Francisco Canejo, agora com a promessa oficial de ser contratado definitivamente “no início do ano vindouro, meu rapaz”, dizia o então presidente.
Muito ainda se contratou para a construção daquela igreja, localizada em uma cidade de uma província distante. Sua construção e os homens ao seu redor, imersos em um panorama político ainda instável e sujeito a momentos de crise absoluta ou tantalizante apatia, tentavam contornar as dificuldades e esconder seus propósitos escusos. Amedrontados com as rebeliões provinciais do passado recente, os homens do Império buscavam de todas as maneiras um apaziguamento e preservação da unidade territorial do país. Esmagados os descontentamentos populares, o domínio era total da aristocracia. O Segundo Reinado de D. Pedro II, com todas as suas idiossincrasias, estava em seu apogeu e ainda duraria muito tempo, com Liberais e Conservadores governando juntos, por meio de acordos políticos dos mais estapafúrdios possíveis. Mas isso também era irrelevante para aquela terra distante.
Durante os anos de 1858 e 1859, os cavouqueiros e pedreiros contratados, prepararam e reviraram o terreno onde seria construída a igreja Matriz, com um ímpeto acirrado. Durante esse período, mais de 1.800 carradas de pedra e cerca de 700 carroças de terra foram revolvidas no local. Os trabalhadores indígenas e africanos faziam o possível e o impossível para que aquele chão fosse aberto para os alicerces, com suas costas sofrendo sob um sol inclemente. Mas, quando chovia, eles paravam. Nessas ocasiões, suas frustrações eram então abafadas com o álcool ou nas eventuais brigas nos barracões. Francisco Canejo, como principal mestre-pedreiro e gestor da obra, procurava contê-los com sua liderança. Mas, tanto a indisciplina grassou no início daquela obra, que o governo imperial da Província, já sob o tacão de Manoel Gomes Corrêa de Miranda como seu presidente, que havia assumido no lugar de Francisco Furtado, no dia 30 de maio de 1859, ano em curso, resolveu nomear - preocupado com as possíveis consequências daquele caos no canteiro de obras, para a manutenção da ordem pública na cidade - um novo diretor das obras públicas. O escolhido foi o major Carlos de Melo Camisão, um militar severo, da velha estirpe dos que ainda lutavam pela manutenção da ordem e da unificação do país. Camisão entrara com o intuito, não apenas de controlar as obras, notadamente a igreja, mas de policiar e repreender os trabalhadores arruaceiros. Mas, não demoraria muito o homem e logo seria substituído por outro major.
- É UM ABSURDO! - rosnou Corrêa de Miranda. - Dessa forma não podemos continuar! - exclamou, chateado enquanto sapecava um soco na mesa. Ultrapassamos os sete contos de réis e quase nada foi feito. O senhor tem que fazer alguma coisa, seu Sebastião!
O major Sebastião José Basílio Pyrro, o substituto de Camisão, quase urinou nas calças, dada a ferocidade do presidente.
- Mas excelência - tentou falar. - Estamos levantando a igreja - tentava explicar. E...
- Sim, mas com grande sacrifício e despesa - retrucou Corrêa de Miranda, cortando. - Ultrapassando os créditos - volto a repetir - da coroa - os quais são - não sei se o senhor sabe, de apenas $4:000000 réis. Só o cálculo das paredes de alvenaria alcançou a importância de $798370 réis. Veja aqui! Puxou uma folha de papel cheia de rabiscos.
Pyrro arregalou os olhos sem saber o que dizer.
Percebe-se bem, no relatório que recebi das mãos do Francisco Furtado, que as despesas não param de crescer e os trabalhadores a desaparecer.
- Sim, mas os trabalhadores estão debandando da obra por motivos de doença e...
- E muito vinho sem controle - cortou Corrêa de Miranda.
O diretor balançou a cabeça, concordando.
- Mesmo assim vamos conseguir fechar os lados iniciais de delimitação da igreja em pelo menos vinte e dois palmos de altura - afiançou o diretor de obras.
- E quanto a esses carapinas e africanos que estão trabalhando na obra - continuou o presidente - estou pensando em elaborar um contrato, impondo multas, no caso de beberem ou abandonarem a obra. O que o senhor acha?
- Acho uma medida boa, excelência - assentiu o diretor. - Assim podemos até ter mais dinheiro nos cofres públicos, caso ajam erradamente - continuou.
- E quanto aos tijolos que estavam em falta?
- Devem estar chegando por esses dias - observou o major.
- Maldita província! - resmungou Corrêa de Miranda. - Longe de tudo e de todos - continuou, o olhar perdido e barriga roncando.
- As pedras estão chegando por esses dias, de Paricatuba - relatou o major, tentando amenizar as preocupações do presidente.
- Menos mal - resmungou o presidente. - E o Canejo, onde está? - perguntou.
- Não sei, excelência.
- Esse oficial vive deixando o trabalho de lado e desaparece sem que ninguém saiba onde se meteu - rosnou o presidente. - Diga a ele, assim que o vir, que quero saber detalhes sobre o andamento da construção da nossa igreja - disse o presidente, despedindo-se do major.
O presidente Corrêa de Miranda então se levantou e foi até à janela. “Então esta cidade de Manáos está em minhas mãos agora” sussurrou para si, enquanto olhava o mercado. Seu olhar perscrutador divisou então, ao longe, um homem andando pela praia e que parecia, pela estatura, ser o tal Canejo. “O que esse homem está fazendo a essa hora, ali, andando pela praia?”, pensou.
Enquanto isso, no outeiro da velha olaria, as obras de terraplenagem para a construção da igreja continuavam. Pedreiros, cavouqueiros e capinadores davam andamento aos serviços, sob as ordens severas do agora mestre de obras e ajudante direto de Canejo, major Carlos de Melo Camisão.
Camisão suava aos borbotões. De compleição avantajada e pele avermelhada pelo excessivo afluxo sanguíneo, Camisão distribuía seu olhar concentrado na leva de trabalhadores que cavavam a terra, quase que desejando sapecar no lombo dos mais lentos, como um antigo feitor faria, uma série de chibatadas. Em sua opinião, aqueles problemas todos de fuga e indisciplina dos trabalhadores só tinham um jeito: “chibata no lombo deles”, dizia para um Francisco Canejo incrédulo. Se não havia esse jeito, então Camisão, quando demais invocado com o trabalhador, chamava logo o infeliz, nas horas da noite após o trabalho, para uma briga de pugilato sob a luz de archotes. Quando, então, sob o apupo dos outros, derrubava o ousado com um potente murro no meio dos olhos. E “ai!” se esse fato chegasse aos ouvidos superiores, ainda dizia, amedrontando o socado. Mas tudo isso acontecia quase como divertimento para passar o tempo, já que na semana seguinte ao fato, o próprio major tentava pedir desculpas e recontratar o agredido que, por acaso, não tivesse fugido para bem longe dali. Agindo assim, pensava o truculento major, conseguia manter a disciplina.
Capítulo XII
Reuniões e mais reuniões eram então realizadas, para a construção da Igreja continuar.
- Sabe-se que o preço de tudo está os olhos da cara, senhores - dizia o presidente, abrindo a reunião. - Mas senhores, apesar dos problemas todos, temos que levantar logo essas paredes laterais - completou. Quero ver logo essas paredes levantadas. Já contratamos os laminados aos franceses e eles devem estar chegando no próximo mês.
- Se me permite um aparte, presidente - intercedeu o chefe do Tesouro Provincial, Francisco de Paula Belo, o olhar miúdo e concentrado; próprio para observar contas feitas na ponta do lápis -, mas deixo bem claro que, se quisermos continuar esse trabalho, assim tão rápido, nossas contas de despesas podem se elevar sem controle. A verba de $4:000000 réis, sendo o crédito especial em cima das rendas provinciais, será irrisória para suprir as jornadas aceleradas que propomos.
- Meu caro Belo, não esqueça que temos a promessa de doações de particulares - comentou o presidente, confiante. - Eles nos ajudarão - finalizou, certo.
- É, eu sei, digo isso só para os senhores poderem ter a visão dos gastos. - completou o franzino Francisco Belo. - Mas vejam bem - continuou o preocupado -, só de materiais para a base da igreja já gastamos, até o momento, $6:01365 réis.
Todos se entreolharam e respiraram fundo.
- Mas não mediremos esforços para conseguirmos levantar logo essas paredes laterais, senhor Francisco - observou Miranda. - E está encerrada a reunião, senhores - finalizou o presidente, levantando-se de supetão.
- Acho que esse presidente deve estar com a cabeça virada - comentou Canejo com Francisco Belo, ao sair. - Todos sabemos que não existem trabalhadores suficientes para levantar essa obra - completou. Nem um abrigo decente eles têm.
- Quanto a isso, fique despreocupado, seu Canejo - respondeu o tesoureiro -, amanhã mesmo deve estar chegando uma lona que servirá para abrigar os pobres coitados, das intempéries - salientou, despedindo-se.
Mas o que Canejo também pensava era que logo começaria a estação chuvosa naquela região, segundo soubera no boteco do velho Matos. E baseado nisso as obras poderiam arrefecer um pouco, face às tormentas. E os trabalhadores também haviam se queixado de que não tinham nem onde se abrigar. E como não poderia deixar de ser, tudo isso acontecia em meio a uma série, quase ininterrupta e periódica, de mudanças de presidentes provinciais. Mal um estava esquentando a cadeira e logo era substituído por outro.
E foi o que aconteceu em meados de 1860, após as grandes chuvas terem estancado e o sol de verão passar a esquentar as cabeças de todos, com a posse de Manuel Clementino Carneiro da Cunha. Nomeado a 13 de junho de 1860, governou e levantou a obra possível, até janeiro de 1863. E nesse ínterim, muita coisa aconteceria naquela cidade de Manáos e naquelas escavações operosas.
Mas apesar de tudo em um ano já estavam construídos cerca de 41.000 palmos cúbicos de alvenaria da igreja, conseguindo-se levantar as paredes norte e sul, parte da sacristia e da capela-mor. Francisco Canejo não abandonava a obra um só momento, mesmo contrariado em seu orgulho próprio, de desejar que a frente da igreja tivesse outro rumo. Nas horas de descanso, após a jornada, curava as suas mágoas com um bom vinho do Porto, tomado entre as paredes levantadas. Era quando relaxava de todos os seus problemas.
Canejo então se levantou da pedra onde estava sentado e começou a passar a mão por uma das paredes de tijolos levantada. Em sua imaginação via toda a igreja já construída e repleta de fiéis. Foi quando teve a ideia de que, assim que aquela parte onde seria erguido um dos arcos da nave central estivesse pronta, ele iria fazer um desenho, para a posteridade, de como gostaria que fosse a igreja de seus sonhos. Deixaria assim, sem ninguém perceber, um protesto para os homens do futuro.
(...)
Logo a cidade começou a arrastar as suas chinelas e a reverberar os seus sons. Bandos de araras barulhentas cruzavam o céu do pequenino vilarejo, a proclamarem a vida de todas as manhãs. O ranger das rodas dos carros dos aguadeiros rasgava o resto de silêncio. Por vezes uns gritos indistintos, vindos de longe, ecoavam no ar. Talvez fossem os gritos dos peixeiros, talvez fossem pedaços dos cantos das lavadeiras. Das centenas de casas e barracos, pelos seus forros mal assentados ou pelas coberturas feitas de palhas, saíam fios de fumaça que denotavam que mingaus ou cozidos estavam sendo preparados àquela hora. Ao longe, na colina da velha Olaria, as paredes iniciais, do que se dizia que seria uma igreja, pareciam levantar-se do chão, flutuando no ar.
Mas as obras da igreja avançavam nos passos lentos e cadenciados de uma tartaruga amazônica, as paredes laterais subiam e tomavam forma. Só a frente da capela-mor já estava a 22 palmos de altura. Mas o crédito continuava insuficiente para tão grande expectativa, com os serviços constantemente prejudicados, com os pagamentos das jornadas sendo atrasados. Para o novo presidente, a compra de material era o imprescindível e o principal agora. E, face às vantagens pessoais, era nisso que ele aplicava toda a sua energia. Mas, ao perceberem tudo isso, Canejo e os outros trabalhadores começaram então a fazer corpo mole, faltando ao serviço e a “encherem a cara” de vinho também. Tanto que o engenheiro e diretor das obras públicas, major Pyrro, reclamou.
- Excelência, desse jeito não dá! - disse em uma das inúmeras reuniões palacianas. - Torna-se urgente pegar esses cabras que não querem trabalhar - continuou. Temos que engajar, perante a repartição das obras, operários por dois e até quatro anos, impondo, excelência, uma multa, caso abandonem as obras ou cometam indisciplina.
- Hum, hum - resmungava o presidente Carneiro da Cunha, displicentemente.
- E temos que arranjar - replicava Pyrro, continuando - cerca de seis carapinas, seis pedreiros e mais quarenta africanos livres para servirem como operários e serventes. - Os indígenas não querem mais trabalhar nesses serviços - salientou, pesaroso.
- Faremos o que for preciso - respondeu o presidente vagamente e sem levantar a cabeça, enquanto rabiscava uns desenhos em um papel.
O tempo então mais uma vez passou rapidamente pela cidade de Manáos, em seus percalços administrativos, produtivos e especulativos. No relatório da Província apresentado à Assembleia Legislativa Provincial, o então presidente Carneiro da Cunha propalava, na sessão ordinária do dia 3 de maio, do ano de 1862, que, do dia “26 de setembro do ano passado a 11 de março último, construíram-se 17.156 palmos cúbicos de alvenaria”.
Mas, em determinada manhã desses dias de construção, quando os trabalhadores da obra chegaram, Canejo estava deitado, morto de bêbado, em cima de uma pedra. E ali perto de onde estava, ntaram apenas um estranho desenho num dos arcos abobadados que já tinha sido erguido e uma garrafa de vinho pela metade. Mais tarde, Francisco Canejo, agora mais sóbrio, usaria aquela mesma garrafa e outra ainda aberta, para encapsular discretamente, logo após o almoço e a dispensa dos trabalhadores, dois manuscritos revelando não só tudo o que lhe ia à alma, mas também tudo o que lhe fora relatado pelos três homens misteriosos, sobre o tal tesouro dos Templários. E assim se fez, mais uma vez um segredo e um mistério que só muitos anos depois deveriam ser novamente redescobertos. Segundo o desejo de Francisco Canejo, modesto oficial de pedreiro, examinado nas cinco ordens de arquitetura e arte.
(...)
Com o ano de 1863 passando sem maiores complicações para o andamento da obra. De irregular acontecera apenas uma cena de pugilato, logo no finalzinho do ano, acontecida no interior do canteiro de obras. Para a alegria de todos os trabalhadores e da polpuda bolsa de apostas que se estabeleceu. A luta se deu entre o major Camisão e o negro Domingos que, mesmo ganhando a peleja, abrindo o supercílio de Camisão e derrubando-o com um potente soco de mula, não pôde continuar trabalhando na construção, pelo simples fato de que teve que fugir às pressas, escorraçado pelos solidários capangas do ensanguentado e desorientado Camisão.
E quando o ano de 1864 começou, em meio a um dia chuvoso do mês de janeiro, tomou posse então, na presidência da Província do Amazonas, o senhor Adolfo de Barros Cavalcante de Albuquerque Lacerda. Com um mandato que durou até maio de 1865. Esse presidente enfrentaria um problema político e religioso que se prolongaria pelos outros anos de sua administração. De uma maneira, podemos dizer assim, espinhosa, o qual foi o fato do papa Pio IX, através de sua bula Syllabus, ter execrado a permanência e a existência de maçons nos quadros da igreja. Logo eles, que estavam, desde o começo, integrados no Império, com o próprio Imperador pertencendo à maçonaria, e todos os locais, garantidamente, ajudando a Matriz de Nossa Senhora da Conceição a ser erguida. O Imperador rejeitou a bula, os bispos ficaram divididos e a igreja continuou sendo erguida em meio a uma guerra silenciosa que chegou a provocar, em alguns casos, situações constrangedoras e arbitrárias devido ao embate. Mas, em relatório, Adolfo de Barros Lacerda esclareceu que “as paredes da igreja estavam bem altas e o material, como pernas-mancas e vigas para teto e forro, havia chegado”. Porém, o dinheiro sumia pelo ralo, não havendo extração de loteria que desse jeito. Mas, quando o prazo do seu mandato finalmente esgotou, surge então um nome para assumir o governo e quem daria o maior impulso jamais dado por um governante provincial àquela obra sacra, o doutor Antônio Epaminondas de Melo. Austero e comedido, além de político hábil, quando cofiava o seu longo e pontudo bigode enquanto olhava o rio, todos diziam, era porque a sua cabeça arquitetava planos para arrancar mais dinheiro dos homens do Império.
- Meu principal dever, nesta cidade de Manáos, vai ser abrir uma grande avenida que irá atingir, aberta e larga, a região da Cachoeira Grande! - disse logo no início de seu discurso de posse. - Serão essa estrada e o término dessas obras da nossa Matriz, os meus maiores desafios, senhores e senhoras! - continuou. Toda a minha atenção será concentrada em aumentar os créditos, usando, se possível, as sobras de outras verbas! E para isso, senhoras e senhores, uma de minhas primeiras medidas será nomear uma comissão para poder angariar fundos!
Uma torrente de palmas então interrompeu a fala do novo e proficiente presidente, demorando-se a ovação por alguns segundos. Terminada a euforia, o presidente Epaminondas de Melo continuou o seu discurso por mais uns quinze minutos, sob os olhares fascinados do povaréu incrédulo, mas esperançoso, naquela pequenina cidade. Se alguns não acreditavam no que o novo presidente prometia; outros, acreditando ainda mais, precipitavam-se ao seu encontro na promessa de alguns negócios. Afinal, os mais bem informados entre esses já se antecipavam naturalmente, sabendo que profundas mudanças aconteceriam no panorama da província e da cidade, pois, desde o ano anterior, o presidente Sinval Odorico de Moura já havia profetizado, dizendo em discurso que: “a navegação deve ser expandida, estradas serão abertas e seringais povoados ... aconselho, portanto, que esses seringais adotem métodos mais racionais de exploração da borracha e da salsaparrilha; e, recomendo, a plantação de mais seringueiras; e, aconselho ainda, que todos os nossos homens de ação leiam o relatório do senhor Silva Coutinho, intitulado “Breve Notícia Sobre a Extração da Salsa e da Seringa: Vantagens de Sua Cultura”. Ninguém então, entre esses, poderia mais esperar. Da comissão nomeada por Epaminondas de Melo, participara os senhores Salustiano Costa, Gabriel Guimarães, João Marcelino Pau-Brasil, dentre outros. Esses conseguiram bastante réis, e Epaminondas obteve uma ajuda significativa do governo imperial. Iniciava-se o annus mirabilis, como deixou bem claro o presidente Epaminondas, em conversa de pé de ouvido com um dos integrantes da tal comissão.
- Meu caro Gabriel, a saída é apenas esta que propus, que será conseguir mais recursos - comentava. - Não há na província obra mais importante a fazer-se - salientou. Temos que nos esforçar para o edifício de Deus chegar a sua conclusão.
- E Vossa Excelência pode obter muitos recursos - observava Gabriel.
- Quero que peça ao João José que faça um projeto de lei autorizando o presidente da província a despender com a obra da Matriz todas as sobras de todos os créditos concedidos na lei do orçamento provincial, do exercício passado - externou o presidente Epaminondas. E do corrente também - completou, levantando a mão. E que esta lei saia decretada ainda em setembro, no quadragésimo quarto ano da Independência e do Império. E instituiremos mais umas loterias com os benefícios a serem revertidos para a construção. Que sejam, meu caro, pelo menos seis loterias por ano. E que o primeiro prêmio pague $ 500000!
E isso tudo foi feito e com os recursos extras entrando, a igreja Matriz conseguiu ter a sua Capela-Mor coberta de madeira e telha, as sacristias laterais edificadas e foram finalmente levantadas as quatro paredes que compuseram os extensos corredores, que dividiam o corpo da Igreja. Realmente, durante esse governo de Epaminondas de Melo, não só a igreja Matriz expandiu as suas esperanças de voltar a existir, como também a cidade de Manáos cresceu um pouco mais.
Capítulo XIII
Tudo parecia correr às mil maravilhas na cidade de Manáos. Inclusive com a criação da Companhia Fluvial do Alto Amazonas, fundada por Alexandre Paulo de Brito Amorim, com monopólio por vinte anos, segundo contrato, da navegação dos rios Purus, Madeira e Negro. Mas, quando novembro chegou, longe daquela província, quase no outro extremo do país, o governo paraguaio ordenou o aprisionamento do navio brasileiro Marquês de Olinda, retendo, entre os passageiros, nada mais, nada menos que o próprio Presidente da Província do Mato Grosso, Carneiro de Campos. A resposta imediata do governo brasileiro foi declarar a guerra. E a Província do Amazonas teve que enviar, entre 1865 e 1868, cerca de 1.324 homens. Só em 1865 foram enviados para essa guerra, no navio Tapajós, 339 homens da guarnição de Manáos.
Mas a viagem repentina do mestre Canejo, as remessas de tropas, os gastos com a guerra e a falta de homens, provocaram como resultado, mais um pouco de atraso na construção da igreja.
- Que faremos agora? - perguntou Pyrro, dirigindo-se a Epaminondas.
Epaminondas cofiou o bigode e respondeu.
- O jeito é contratarmos os serviços de um mestre pedreiro e empreiteiro particular, que tenha condições de contratar, por sua vez, seus próprios homens.
- Mas quem? - perguntou o vereador Pau-Brasil, um dos presentes na roda de conversa.
O mesmo Pyrro respondeu, lembrando-se de um nome.
- O “seu” José Francisco Fernandes!
- Mas ele, além de cobrar caro, Pyrro, anda ocupado no término do aterro da Praça da Imperatriz - disse Pau-Brasil.
Após essa conversa outras aconteceram para resolver esse impasse. E tanto se conversou que o tenente-coronel Sebastião José Basílio Pyrro acabou por contratar o mestre Fernandes. Um contrato, diga-se de passagem, que ainda daria muito o que falar. Contratado por $223:000000 de réis, com prestações anuais de $25:000000 réis, uma fortuna para a época, foi-lhe dado o encargo de, como pedreiro e carpina, adiantar o máximo possível a igreja. Era o ano de 1866.
- Esse contrato parece fraudulento - comentou padre Joaquim determinado dia, logo após uma missa na igreja dos Remédios, com o vereador Salustiano de Araújo. - Alguém está aproveitando o desembaraço - observou, ironizando.
- E ainda digo mais, padre, o espertalhão que está por trás disso é o deputado José Bernardo Miquiles, aquele cara cinzenta - desabafou Salustiano, um descendente de cearense misturado com português e com um porte forte e atarracado, com o rosto perfurado por antigos carbúnculos mal curados.
- Isso não pode ficar desse jeito - reclamou o padre. - O dinheiro tem que ser destinado para a obra, e não para os bolsos de quem quer que seja.
- Alguém tem que fazer alguma coisa contra esse descalabro político! - disse Salustiano. - Devemos, padre, fazer chegar essa verdade em outros ouvidos - completou o indignado.
A pendenga se alastrou. Fora um roubo sutil e declarado às finanças provinciais. O novíssimo presidente Jacinto Rego, homem íntegro e correto por sua formação conservadora, ao tomar posse, tratou logo de emitir um ofício ao Governo Imperial. Relata a maneira como esse contrato fraudulento tinha sido elaborado, não sem antes declarar, em alto e bom-tom, na sessão de abertura da Assembleia Legislativa Provincial, o que detectara.
Essa reunião esperada realizou-se em um casarão ao lado do Palácio da Presidência, abarrotado de políticos, empreiteiros e curiosos. Era o ano de 1868 da graça de Sua Majestade Imperial.
- Não é possível, meus senhores e minhas senhoras, que agora em que estamos tratando de organizar as finanças na esperança de um futuro melhor, situações como essa venham à baila como uma verdade que não é verdadeira! - começou a discursar o presidente, enxugando com um lenço o suor que lhe descia pelas têmporas e nariz. - Sendo a obra mais importante de todas as da província até agora, foi também a única que, em lei especial, foi avaliada em preço superior à renda anual da província - completou. Era meu dever, então, prestar toda a atenção e examinar o contrato ... Reconheci, portanto, que devia resolver a suspensão imediata desse contrato; para todos os efeitos ... (aplausos, apupos e vaias generalizadas do povaréu reunido) ... E o Governo Imperial acatou o meu pedido de anulação.
Quando saiu do plenário, escoltado por soldados da guarda palaciana, Jacinto Rego reuniu-se com o grupo político dos afetos e dos desafetos, para esclarecer melhor o assunto.
- Não poderia ser de outra maneira - explicava, entre suores e tremores. - Essas prestações eram abusivas e iriam drenar a verba para a obra - continuou. E o povo já comentava que a loteria estava servindo para enriquecer os bolsos de um grupo. Não havia garantias prévias para o governo em cima do que esse senhor ganhava. Sigo, senhores, apenas o que disse o Visconde de Uruguai em seu compêndio “Estudos Práticos de Administração das Províncias”.
- Mas, presidente, é um contrato realizado assim dessa forma, mas não sem o conhecimento de todos os envolvidos na lavratura - observou o deputado João Inácio Rodrigues do Carmo.
O presidente tossiu e não se conteve, aborrecido.
- Meu caro, Inácio - recomeçou então o presidente -, uma importante condição externa, que não deve faltar em um contrato de obras com o Governo, e que faz a diferença dos contratos particulares, é a observância ao orçamento, com seus encargos e as assinaturas de procuradores e das partes. - E isso - afiançou, com o olhar ameaçador -, não foi cumprido. E os encargos foram tão pouco discriminados que o senhor Fernandes tinha tudo a seu favor.
- Mas a obra não deve ficar paralisada por causa disso, concordas comigo? - disse um padre Joaquim, preocupado.
- E quanto ao senhor Fernandes? - perguntou alguém.
- Darei ordens amanhã mesmo para ser devidamente indenizado pela secretaria provincial, assinando um pedido de anulação - respondeu o presidente Rego. - E, infelizmente, serei obrigado a exonerar o senhor procurador fiscal Clementino Pereira por não cumprir com suas obrigações - finalizou, contrariando alguns dos presentes.
Entre conversas das mais exaltadas, o assunto então foi sendo encerrado. Para alívio do presidente Rego.
(...)
Já agora, estava sentado na mesa de despachos da presidência o experiente João Wilkens de Matos. Em seu olhar, tranquilamente azul, ele via que muita coisa começava a mudar a passos largos, naquela distante província dos trópicos. O látex extraído de uma árvore, que se espalhava em profusão pela imensa floresta, começava a mostrar resultados alvissareiros. Tanto os boatos de exploração econômica se espalharam que, sem alarde e na maior discrição, o presidente Jacinto Rego, querendo rivalizar com Epaminondas de Melo, que houvera feito o mesmo com o casal Agassiz, resolveu apoiar a expedição de um tal de Franz Keller ao Madeira. E breve, logo em breve, a cidade de Manáos dormiria e acordaria sob as luzes de uma iluminação a querosene. O que se daria no próximo governo do presidente Wilkens de Matos. Também apareceriam dois mestres, um, de carpina e outro da alvenaria: mestre Fontão e mestre Ramalho. Quando, então, a obra da Matriz tomaria um impulso significativo. - Senhores, a situação da nossa igreja Matriz está crítica, como sabem - disse Wilkens na direção dos dois homens. - Todos sabem muito bem o que aconteceu nesta cidade em matéria de descalabros de toda a espécie - continuou. Se à época eu fosse o administrador desta província, isso tudo não teria acontecido. Bastava fiscalizar direito esse contrato para a obra ter a sua celeridade e perfeição.
Mestre Fontão, um orgulhoso carpinteiro, descendente de uma estirpe de origem portuguesa, escutava tudo aquilo sem pestanejar. De baixa estatura, forte e espadaúdo, o olhar de mestre Fontão era de uma objetividade e rigidez de quem sabia muito bem sobre o que falar e sobre o que calar. Acompanhado de mestre Ramalho, um pouco mais velho, magro e acanhado, os dois trabalhavam sempre em dupla. Diziam ser melhor assim, pois as obras caminhavam mais rapidamente, em uma linha predeterminada de complementaridade de serviço.
- Mas senhores - recomeçou a falar, mudando de assunto, Wilkens de Matos -, desde esse problema do contrato anterior, as coisas mudaram muito em termos de contratar alguém. O senhor Jacinto Rego, antes de sair, mudou as regras de contratação. Agora o contrato com o carpina e o pedreiro é restrito a apenas um ano de vigência. E para cada ano só poderemos despender a quantia de $30:000000 para pagamento das prestações devidas.
Os dois balançavam a cabeça concordando com tudo. Afinal, aquela era uma obra que não poderia ser jogada fora. Se os homens do governo iriam pagar pouco não importava. O que importava para mestre Fontão e para mestre Ramalho, e sobre isso eles haviam conversado, era a oportunidade de terminar aquela igreja majestosa. A maior obra já feita por uma província do norte.
- Quanto ao material, os senhores já devem saber que estamos atravessando uma falta crônica de tijolos - esclareceu Wilkens de Matos. - Trabalhem então nas possibilidades - orientou. Mestre Fontão ficará responsável pelo forro e não tem problema; mas o senhor, mestre Ramalho, trate apenas de construir a parede em arcaria que sustenta o coro, parte do telhado e parte das naves laterais, por ser só o que dá. E passem bem, senhores.
Quando os dois empreiteiros saíram, Wilkens de Matos levantou-se e foi até à janela para olhar lá fora. O dia estava quente e ele sentia certo cansaço pela inoperância reinante. Seus pensamentos voltaram-se então para o tempo em que trabalhava para o conselheiro Herculano Ferreira Pena, dezesseis anos atrás. Como engenheiro contratado, assistira a dias difíceis na tentativa de levantar aquela obra. Vira toda a sorte de dificuldades assolar a construção daquela igreja. Desde desinteresses coletivos até atos de pura sabotagem. Tudo isso ele sentia e lastimava. Até a anulação daquele contrato o deixava preocupado, pois sabia que afetaria, como afetou, o andamento da obra. Wilkens de Matos então, cansado de também pensar, resolveu pegar o seu chapéu e ir dar uma volta na praia e subir até à ponta do forte. Afinal, o sol da tarde caindo, visto do pontão onde ficava o forte arruinado, era sempre um espetáculo gratuito daquele fim de mundo. Em seu íntimo, Wilkens sabia que faria uma proba administração. E fez. Quando deixou o governo da Província do Amazonas, para se tornar o Barão de Mariuá, Wilkens havia deixado acumular no cofre público a quantia altamente significativa de $199:000000. Extremamente expressiva para a época.
No ano de 1870, que se iniciara, um coronel de nome José de Miranda da Silva Reis era o presidente. Nascido no Rio de Janeiro, tinha certa influência com os homens do Imperador. Militar e sonhador, um dos heróis da Guerra do Paraguai, Reis acreditava que o Brasil um dia mudaria para melhor, já que a ordem no país parecia estar resguardada, com os militares mais fortalecidos por uma guerra bem realizada. Estatura mediana, sempre empertigada e o olhar severo, num rosto ressaltado por um enorme bigode pontudo, sua voz era sempre de comando. E tanto solicitou e fez pressão que os tijolos que faltavam começaram a aparecer lentamente, dando um impulso à obra.
- Os tijolos agora não irão faltar mais - disse ao ver as barcaças repletas de tijolos, aportando na rampa do porto da praia.
Tijolo sobre tijolo e o edifício da igreja Matriz já começava a apresentar uma altura impressionável aos sentidos sagrados de todos os moradores do lugar. As paredes já estavam sendo guarnecidas de cimalhas, o frontão rasgado, o teto da capela-mor estava pronto e só estava faltando o forro. Os créditos da igreja haviam sido aumentados para $105:000000. Tanto havia sido feito, apesar de todos os problemas, que o atual diretor das Obras Públicas, Luís Martins da Silva, conhecido como “seu” Lulu, resolveu, em uma noite de lua cheia, sentar-se em sua varanda para, com a ajuda de apenas um candeeiro, redigir o seu detalhado relatório onde, em quatro páginas, das vinte e seis escritas, ele diz.
... “Esta obra tem marchado regular. Tendo-se concluído a parede que divide uma das naves do corpo da igreja, me ordenou v. exca. que organizasse o orçamento da mão de obra necessária para a construção de toda a cornija da parede do lado oriental, compreendendo as da torre e parte da frente ... (continuando) ... Muita dificuldade tem se vencido para conseguir a remoção do excesso do material que se achava depositado ... (continuando) ... Desta obra, prestam-se para certos trabalhos, alguns materiais, sem prejuízo, porém, das necessidades. Com estes auxílios de umas obras para outras lucra o serviço, e sempre tenho o cuidado de remeter oportunamente as competentes notas para as devidas indenizações ... Atualmente, graças a providências tomadas por v.exca. temos no serviço das obras públicas 35 indígenas, dos quais doze foram prestados, por ordem de v.exca., ao sr. Major Francisco Antônio Monteiro Tapajós, para auxiliá-lo no serviço da olaria, correndo os salários por conta desse senhor. Tem-se prestado, também por ordem de v.exca., ao sr. capitão João Fleury da Silva Brabo, alguns indígenas para auxiliarem o serviço da condução da madeira, destinada à obra em questão, levando-se-lhe em conta as despesas com os salários vencidos pelos mesmos indígenas. No vapor de 24 de dezembro chegaram” ...
Muito ainda o “seu” Luís Martins, o Lulu, escreveu naquela noite enluarada. Diligentemente sabia que a situação das obras na província estava caminhando, apesar das dificuldades. Para ele, que via a cidade na totalidade, tudo estava melhorando. Para a igreja, havia até a promessa de que dois importantes mestres da carpintaria e da alvenaria seriam imediatamente contratados, para dar um mais efetivo andamento à obra. E isso foi feito, embora com alguns inconvenientes.
Quando o ano de 1871 chegou, lá estavam mestres Fontão e Ramalho apressando-se em meio a uma obra que parecia revelar-se no horizonte. E no interior da igreja o movimento também era igual. Pelas paredes, entre andaimes e no chão, indígenas e moleques aprendizes se esforçavam sob o comando daqueles dois mestres, com ampla experiência em construção em alvenaria e carpintaria. E não só experientes, mas também temidos pelas exigências que faziam. E então esses indígenas não paravam de subir em andaimes, transportando vigas e formões para fixar no forro da capela, enquanto embaixo outro tanto de trabalhadores e aprendizes tratavam de assentar o assoalho. Mestre Fontão e mestre Ramalho, não desviavam um tempo sequer de seus afazeres, tal a rapidez, rara para época, que empregavam em suas diligências de construtores. O que impressionava, sobremaneira a todos, eram a forma e a rapidez que mestre Ramalho imprimia no ato de emboçar e rebocar a capela-mor, principalmente as paredes laterais que ficavam por cima do forro da capela e nas faces externas posteriores dessa mesma capela.
Mas apesar de alguns problemas estarem sendo resolvidos a contento, os dois mestres pecavam pelo descalabro com que tratavam seus subordinados. Devido às suas personalidades fortes, exercendo o total controle sobre os oficiais e aprendizes, provocavam, por vezes, uma revolta silenciosa e de morosidade acordada entre todos no trabalho. Sem eles perceberem, havia sido criado um clima de animosidade no interior do templo que estava sendo erguido. E a coisa desandou ainda mais quando um determinado dia, mestre Ramalho perdeu a paciência com a total incompetência de um aprendiz, levou-o a um canto da obra e lhe sapecou uma série de tapas, puxões de orelha, murros e pontapés que o infeliz quase entrou em coma.
- Seu miserável traquina e louco! - gritava mestre Ramalho contra o jovem Tiago de dezesseis anos, que havia errado em um cálculo preestabelecido para a colocação de uma viga. - Tu não vês direito, seu bobo! - gritava o mestre, puxando-o por uma das orelhas e sapecando-lhe uma série de tapas na cabeça. Abre a mão direita, vamos!
- Não, mestre Ramalho! - implorava o jovem mancebo. - A palmatória não! - pedia, quase de joelhos.
- Vais aprender a fazer direito as coisas que eu mandar, moleque! Abre a mão!
Mestre Ramalho então pegou a enorme palmatória furada e fez o jovem Tiago ajoelhar-se para esticar a mão. E sapecou-lhe com tanta força trinta palmatoadas que os gritos do jovem aprendiz acordaram quem, por acaso, estivesse dormindo àquela hora na cidade. E ainda não satisfeito com o escarcéu, deu-lhe uns murros no rosto que o pobre coitado teve que ir parar no hospital.
- Bando de aprendizes preguiçosos! Toma! Toma! E toma, para aprender a trabalhar direito!
- Ai!Ai!Ai!
No dia seguinte não havia assunto outro, em toda a cidade, que não o daquele moleque que quase morreu nas mãos arbitrárias do mestre de obras da igreja.
- Mas mestre Ramalho desta vez abusou dos castigos físicos - comentava o velho tipógrafo Silva Ramos, em roda de homens.
- Além das sangrias nos cofres, eles sangram as mãos desses pobres coitados - comentou outro.
- É um descalabro! Um absurdo! Os pobres dos indígenas e os nossos filhos nas mãos desses famigerados! Não devemos admitir!
Quando o presidente soube do acontecido, mandou chamar os dois mestres ao seu gabinete e deu-lhes a entender que aquilo não poderia mais acontecer. Ainda mais nas dependências da igreja Matriz. “Onde eles estavam com a cabeça por exercerem tamanha situação!?”, perguntou, incisivo. Continuasse assim ele teria que rescindir o contrato. “Não é de bom-tom para o governo agir assim ... Temos que incentivar esses indivíduos a trabalhar segundo o merecimento, e não podemos matá-los”, disse o presidente, antes de despachar os dois mestres truculentos.
Nesse clima e compasso, as obras da igreja Matriz iam tomando a sua direção na proposição. A construção, apesar de um adiantamento, ainda estava longe de seu término.
- Sabe, meu caro Martins - dizia o presidente Reis, conversando com o diretor de obras no interior da igreja -, não vejo a hora de ver essas paredes vibrando ao som de um grande órgão e dos cantos litúrgicos.
- Também penso o mesmo, excelência - concordava o diretor de obras, enquanto passeava os olhos pelas paredes levantadas da igreja.
- Este majestoso templo, cujas obras neste último ano de meu mandato tiveram um considerável progresso - ressaltou -, acha-se, finalmente, perto de ser concluído. Após muita luta e sacrifício.
- Hum, hum - concordava o diretor, balançando a cabeça.
-Tudo está coberto, os corredores feitos e pintados - continuava.
- Por esses dias devem estar chegando os ladrilhos de mármore de Portugal, excelência - disse o diretor, cortando os pensamentos do presidente.
- Fico feliz - observou o presidente, com um sorriso de satisfação nos lábios.
Miranda Reis sabia trabalhar. Além da igreja, ainda abrira outras frentes de trabalho, como o calçamento do Paço Imperial, as ruas do Imperador, das Flores e a Brasileira.
E muito se emboçou, muito se rebocou e muito também se caiou, dentro e fora daquela igreja, naquele ano e nos primeiros meses de 1872. Os serviços por empreitada de mão de obra estavam dando certo, com a província entrando na obra só com o material. Agora, a única situação que atrasava a obra já não era tanto a escassez, mas sim o excesso. Excesso, diga-se de passagem, de outras obras e restauros provinciais em andamento. Como os realizados no quartel, na cadeia, no hospital militar e nas escolas e pontes. Com os ânimos apaziguados de mestre Ramalho e mestre Fontão, a obra tomava a forma realmente de uma igreja. Quando, no mês de março, o presidente Reis foi ver as obras de perto e conversar com os dois empreiteiros, ficou ainda mais maravilhado com o que viu e escutou.
- Se vossa excelência chegar até aqui, verá - dizia mestre Ramalho, pegando no ombro de Reis - toda a beleza dessa parede que fizemos para sustentar o coro, uma obra difícil, excelência, mas feita com todo o esmero. - Desaterramos todo o interior da igreja, como o senhor bem pode ver - continuava mostrando a obra. E ali, veja, no lado oriental, está o novo arco de uma das portas da sacristia. E na parede que fica por cima desse arco, fez-se uma cornija.
- Ótimo! E vejo também que o forro da capela já foi pintado - comentou o presidente, satisfeito.
- Tudo foi feito como o combinado, excelência - resolveu falar mestre Fontão. - Se o senhor reparar bem; lá atrás - continuou o mestre, apontando para uma parte escura da igreja -, verá que já foram colocadas as vidraças nas três janelas que dão para a Rua Brasileira. E os telhados das duas sacristias já estão todos encaliçados, emboçados e...
- Percebo muito bem que agora temos finalmente algo parecido com uma igreja - disse o presidente, cortando Fontão. - Paredes, teto, assoalhos e corredores.
- E as telhas! - como o senhor pode ver - disse Fontão -, estão sendo colocadas.
- Doze mil telhas! - exclamou Reis, olhando para os seus subordinados com um sorriso aberto.
- Se me permite, excelência, faltam as lajes de liós - intercedeu Ramalho, cortando a alegria de Reis.
O presidente fechou o semblante e desviou imediatamente o olhar para seu diretor de obras, perguntando-lhe.
- Já pedistes, não?
- Sim, excelência - respondeu imediatamente o diretor. - Estão vindo de Lisboa - finalizou. E com o guincho a vapor.
- Oh! - exclamaram quase todos, em alto som, os que ali se encontravam, ao escutarem aquilo.
- Um guincho a vapor, excelência! - exclamou mestre Ramalho, não acreditando no que escutara. - Vamos ter um guincho a vapor aqui em Manáos! - continuou estupefato. Agora que as obras da cidade tomam impulso.
- Pois foi encomendado pelo meu antecessor e deve estar chegando - disse Reis, virando as costas e saindo da igreja, seguido pelo seu grupo.
Nos relatórios do presidente Peixoto, que, por sinal, só deu para ser publicado em 25 de março de 1874, lê-se muito que “os trabalhos realizados em 1873 foram minguados”. Nesse ano, estava como diretor interino das Obras Públicas, um senhor de nome Joaquim Leovegildo de Sousa Coelho, e que declarara, em relatório, ter sido feito o desaterro da nave central para a colocação do vigamento do assoalho”. Tudo feito morosamente. Tanto era assim, que o assentamento dos ladrilhos, de uma das sacristias, ainda estava por terminar. Nesse ano de 1873, o que foi feito era apenas o término do já começado. Mas, muito ainda faltava fazer.
A esperança de todos de que o templo pudesse ser utilizado, ainda em 1874, para a realização dos ofícios, havia sido frustrada. Mas com o retorno de mestre Ramalho e mestre Fontão, a obra da igreja começou a entrar nos eixos novamente. E uma coisa a mais acontecia de prejudicial à obra da igreja: o desvio e a venda de material que bem poderia ser aproveitado nela. E eram os materiais dos mais diversos, que iam para as obras de melhoramento de ruas, da Tesouraria Provincial, para a rampa da Imperatriz e até mesmo para o Palácio Provincial, que, a essa época, diga-se, já apresentava uma melhor aparência. E isso tornara-se uma prática corrente, segundo alguns relatórios mais detalhados da Província. Porém, a maior dificuldade que os dois proficientes e caprichosos mestres enfrentaram, naquele momento de retomada da obra, não foi só e apenas o desvio de parte do material destinado à igreja, mas sim a irregular volta dos trabalhadores indígenas ao trabalho. Pois os mesmos, devido à epidemia de “bexiga”, estavam morrendo de medo de retornar à cidade. E ainda havia outro complicador, segundo mestre Ramalho, a suspensão, por parte do governo imperial, de envio de negros escravos para a Província do Amazonas. Tanto isso aconteceu assim, que, naquele exercício, poucas ordens de pagamento para trabalhadores foram emitidas. Mas, se o trabalho braçal sofria uma queda de ritmo, o mesmo não se poderia dizer das compras de material.
Foi quando então, no dia 10 de abril de 1875, Antônio dos Passos Miranda foi empossado como o novo presidente da província.
A partir desse ano de 1875 a obra da Matriz tomaria, mais ainda, um impulso nunca visto antes e que provocaria a finalização desses serviços de “erguer-se uma nova e gloriosa igreja Matriz”, pronta para os ofícios religiosos. Com o badalar dos sinos glorificando as ordens de Deus e os altares emitindo as rezas dos homens. As torres terminadas, os para-raios sendo afixados e os sinos finalmente colocados.
- Os sinos só poderão ser colocados nos seus devidos lugares se receberem a bênção! - exclamou padre José Manuel dos Santos Pereira, Vigário da Paróquia de Manáos, ao ser interpelado sobre os sinos.
- Mas, padre!? Eles já...
- Em uma grande cerimônia para o povo ver - completou o sacerdote, sem admitir mais objeções.
Foi quando, devido aos reclamos do padre Pereira, a 29 de junho de 1875, os sinos foram oficialmente santificados, já que era a segunda vez que estavam sendo bentos. Atraídos pelo anúncio da cerimônia da bênção dos sinos, o povo da cidade de Manáos acorreu ao local da igreja. Ao redor dos sinos e em profundo silêncio, todos viram então o padre Pereira, após um longo e cansativo discurso, consagrar, respeitosamente, os objetos de bronze e rezar a primeira missa no interior da igreja.
- Peço a Deus - finalizava a bênção, padre Pereira - que se digne dispor santamente as almas dos fiéis para ouvir de agora em diante os sons destes sinos, em um espírito habitual de piedosa meditação, a fim de que mereçam ouvir, um dia, sem terror, a misteriosa trombeta do Juízo Final.
Esses sinos bentos custaram aos cofres da Província $14:000000 réis. Outros ainda seriam colocados. Embora com a igreja levantada, toda emboçada e em parte rebocada, ainda havia muito o que fazer até a sua inauguração oficial. Aterro do subcoro, pintura das grades de ferro, colocação de ladrilhos e pórticos. E isso e aquilo.
(...)
Nos dois anos que faltavam para a conclusão da igreja, o ritmo de trabalho foi acelerado. Apesar de algumas modificações de última hora e da falta crônica de tijolos, agora as obras da Matriz de Nossa Senhora da Conceição alcançavam, finalmente, o seu termo.
Então, em um determinado dia do ano de 1876, ainda no governo de Domingos Jacy - o edifício mais alto, o principal, o mais imponente, o mais difícil de ser construído, o mais forte e altaneiro -, foi, finalmente, concluído. Cerca de 1.736 metros quadrados em formato de caixote Greco-Romano, erguidos e aplainados por mãos de indígenas e africanos livres. A igreja de uma fé absoluta. Com seus vinte e quatro arcos; os oito sinos fundidos na França; mármores talhados na Rua do Corpo Santo, em Lisboa; portas enormes e almofadadas, encimadas por tímpanos retos e triangulares em pedra carbonática; escadaria em liós; e aquelas pias e púlpitos ricamente trabalhados e símbolos santificados. Finalmente pronta para todos os fiéis. Para todos se rejubilarem e maravilharem, enquanto rezavam em busca de expiar seus males e pecados.
Mas, o escolhido pelo destino para passar a régua e fechar a conta nas despesas com a construção da igreja e inaugurá-la, sucedeu Jacy. Seu nome era Agesilau Pereira da Silva. Um Silva! Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito do Recife.
- O que está faltando para a inauguração? - foi a primeira pergunta que Agesilau fez a todos os responsáveis pela obra, assim que tomou posse.
- O que está faltando, excelência, é apenas colocar os altares que chegaram ontem, de Lisboa - respondeu o diretor de obras.
- Vamos colocar mãos à obra para terminar logo.
E, apesar do protesto do presidente Agesilau da Silva, “de que deveriam ter construído tribunas aos lados da capela-mor, para acomodar os presidentes e seus convidados!”, no dia 14 de agosto de 1877, era inaugurada, com a benção oficial do pároco, padre e doutor José Manoel dos Santos Pereira, a nova e majestosa Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição. E muitos entre os que estavam ali lacrimejaram e se emocionaram, quando Padre Pereira terminou o seu discurso, com as seguintes palavras.
“Comparando o que foi e o que é a pequenez de antigas capelas com a magnificência desta nova Matriz, não podemos, como os velhos de Israel, recordando a beleza do antigo templo, ao voltarem do cativeiro da Babilônia para a sua pátria, chorar a beleza da antiga queimada Matriz”
E os sinos repicaram, enchendo o ar da ainda pacata cidade de Manáos.
A antiga Cidade da Barra, atual Manáos, então havia tido a sua aparência também modificada. Com novos edifícios e novos ordenamentos, mentalidades envelhecidas começavam a ceder lugar ao novo; com os Educandos Artífices dando provas de uma instrução adequada, para o que estava surgindo no horizonte. Vapores, com suas chaminés características, apareciam em quantidade nunca vista ao largo do Rio Negro, ocupando os espaços antes dos bergantins, das alvarengas e das canoas cobertas com folhas. Aterros para praças, jardins e ruas brotavam nas esquinas da cidade, da noite para o dia, como num passe de mágica. Manáos começara a ser iluminada por novas luzes, de um novo tempo que chegava. Logo as casas comerciais se multiplicariam, a população cresceria e uma leva de novos personagens apareceria na cidade, atraída por uma ordem econômica delirante e um novo leque de sonhos. Foi então que, repentinamente, os sinos pararam de badalar. Naquele distante ano de 1877. Em uma distante cidade amazônica localizada nos confins do mundo civilizado de antão.
PAES
Ano de 1926 - Belém
Capítulo I
No porto de Belém, capital do estado, o vapor Paes de Carvalho saía exatamente na hora prevista. O cais do Val-de-Cães estava lotado de amigos e familiares dos inúmeros passageiros que haviam embarcado naquele dia. Gritos a desejarem boa viagem e últimas recomendações inundavam o ar e misturavam-se com o barulho das máquinas acionadas. A postos na cabina de comando, o comandante João de Deus, garbosamente vestido todo de linho branco e com os ombros decorados com os galões dourados, próprios de um oficial superior, fazia os últimos gestos necessários ao controle da embarcação. Sua preocupação no momento era colocar a proa do vapor na direção certa para iniciar a navegação. Havia muitos anos que o gordo e bonachão comandante trabalhava para a companhia inglesa Amazon River, dona da embarcação e da maior frota que navegava aquelas águas amazônicas. Português de nascimento, naturalizado brasileiro, viera para o Amazonas com apenas oito anos. Prático aos onze, com trinta e um anos, após prestar exames de pilotagem em Belém, conseguira tornar-se comandante. Agora, com quarenta e três anos, João de Deus já adquirira o respeito de todos os que o conheciam como um marinheiro experiente e acostumado às agruras imprevisíveis da navegação fluvial pela Amazônia. Era um homem forte, com a estatura acima da média, o que lhe conferia uma presença sempre marcante e quase inesquecível. Seus lábios eram grossos e sensuais, encimados por um discreto bigode. A cor da pele tornara-se um pouco escura devido aos anos de contato com o sol da região. Os cabelos eram repartidos de lado, em um semblante firmemente talhado por um excesso de gordura aparente, o que lhe proporcionava um ar sempre jovial. O olhar demonstrava a firmeza de um homem voltado inteiramente para o domínio pleno de qualquer situação, afeita ao exercício de sua atividade. João de Deus carregava um pequeno defeito físico em um dos pés, o que acabou por provocar-lhe o apelido de pé de bola. Considerado um piloto conhecedor de cada reentrância daqueles rios, em Manaus, cidade que o adotara desde cedo, era conhecido e estimado por todos. Naquela noite, apesar de tudo estar correndo bem, o comandante sentia-se um pouco tenso e preocupado. Seu desejo era cumprir toda a escala da rota estabelecida, para o Paes de Carvalho de ida até Manaus e volta a Belém. Há apenas cinco meses, nascera-lhe mais um filho, o nono. Era uma menina, que recebera o nome de Denise. Quando do nascimento, mal tivera tempo de olhar a criança e já estava embarcando novamente para cumprir suas rotas de navegação. Rotas sempre demoradas e cansativas. “Parar no local, despachar, receber; parar em portos de lenha, esperar e abastecer ... Sua vida seria sempre assim, navegando?”, pensava, enquanto já aprumava a quilha do luminoso “gaiola”, como o povo amazônico apelidara esses navios de tonelagem média e movidos a lenha.
- Comandante! - chamou-lhe a atenção uma voz feminina.
O comandante desviou o olhar em direção à voz. Uma mulher vestida elegantemente, de cabelos curtos e aparentando meia-idade, aproximara-se por uma das janelinhas laterais da cabina de comando.
- Posso entrar para falar com o senhor? - perguntou a mulher.
- Infelizmente não, madame - respondeu o comandante. - São normas da companhia - explicou.
- Então vou falar-lhe daqui mesmo - insistiu a mulher.
- Pois não, minha senhora, pode falar - pediu-lhe o comandante, procurando manter a calma.
- Sabe o que é, comandante - começou a falar e a explicar a mulher. - Daqui a mais um pouco, como o senhor já deve estar sabendo, haverá uma festa de aniversário no salão de recreio ... É minha sobrinha que faz anos ... E nós ... Bem ... Fazemos questão de que o senhor compareça. O senhor e seus ajudantes mais próximos.
- Ah! Muito obrigado - agradeceu o comandante. - Mas a senhora sabe que eu não posso me afastar daqui da cabina por muito tempo - disse, desculpando-se.
- Sim, entendo - concordou a mulher. - Mas conto com o senhor, nem que seja só por alguns minutos - completou, despedindo-se com um sorriso.
João de Deus sorriu também. “Vou mandar o Guilherme em meu lugar”, pensou como solução. Seus olhos e seus pensamentos então se desviaram para o rio. O barulho lento e cadenciado das máquinas, a água sendo afastada pelo navegar do vapor, isso era sua festa.
Capítulo II
No meio do rio, a noite passara rapidamente e logo a madrugada estava anunciando um novo amanhecer. Cansado e meio indisposto, o comandante resolvera entregar o comando do vapor ao seu prático para poder dormir um pouco. Chegando ao camarote, tirou aquela farda pesada e esticou-se relaxadamente em seu beliche. Pegou uma Bíblia que sempre estava ali por perto e começou a ler em forma de reza. Após um tempo, fechou os olhos e adormeceu. Quando acordou, o dia já despontava forte e pleno. Aprontou-se rapidamente e saiu para tomar o café da manhã com a tripulação. Depois subiu com o seu imediato para o passadiço, a fim de substituir o prático.
- Um bom dia “seu” Josino! - disse o comandante. - Chegou a hora de o senhor descansar.
- O senhor está se sentindo bem, comandante? - perguntou-lhe o prático.
- Sim, estou bem - respondeu o comandante. - Mas vá logo tomar seu café e descansar um pouco - completou.
Quando o prático saiu, o comandante entregou o timão ao seu imediato, Guilherme. Sentou-se em uma pequena banqueta, abriu um enorme livro de capa preta, seu diário pessoal, e começou a escrever. Por vezes, no silêncio daquelas manhãs, gostava de fazer aquilo. Era uma maneira de passar o tempo e registrar o que pensava, lugares por onde passara e o que acontecia a bordo. Enquanto a maioria dos passageiros ainda saboreava a primeira refeição matinal ou dormia, João de Deus começou então a escrever ... “Na noite anterior houve festa a bordo. Uma jovem da alta sociedade amazonense estava comemorando seu aniversário. Fui convidado, mas resolvi mandar o Guilherme Muller me representar. Não estava com muita disposição para a festa. Mas depois, pouco antes de me recolher, Guilherme reapareceu rapidamente na cabina e contou-me o que estava acontecendo. Segundo ele, tinha tudo do bom e do melhor nesse aniversário. Foi servido vinho e champanhe e o prato principal foi filet à Amazon River. A comemoração prolongara até a madrugada. Fiquei escutando a algazarra. Agora espero por aquela senhora vir até mim para cobrar-me por eu não ter ido à festa. Não ando me sentindo muito bem. Hoje suei além do normal. Essas viagens ficam cada vez mais cansativas. Mas fora isso, não tenho muito o que reclamar. Faço o que gosto. Aqui, na cabina do comando, estou sempre a realizar um sonho de menino. Essa região é imensa e as distâncias separam muito as pessoas. Gosto desse silêncio inicial de todas as manhãs. Mais do que o silêncio das noites. E o barulho das possantes máquinas que empurram este barco é música para meus ouvidos. Daqui a mais algumas horas, mais uma vez estaremos em Santarém. Mas ando muito preocupado com a quantidade de carga perigosa e o número de pessoas que entram no navio. Eu já conversei sobre isso com eles, mas nenhuma providência foi tomada. Temos que continuar assim. Até quando? É o que eu me pergunto.”
- Guilherme! Vou para o camarote dos oficiais, guardar este livro e já volto - disse o comandante, enquanto fechava o diário. - Vou ver também o que está acontecendo lá por baixo com o resto da tripulação - continuou. Toque o barco para frente, amigo.
- Pode deixar, comandante.
João de Deus então saiu da cabina e caminhou pelo convés superior. Procurava respirar o ar daquela manhã. A navegação tornara-se lenta e cadenciada. As águas do imenso rio pareciam um enorme colchão líquido a estender-se até as bordas das ribanceiras. João de Deus pensava no quanto já navegara por esses rios, furos e paranás. Havia sido comandante nos vapores Índio do Brasil, Madeira - Mamoré, Tefé, e agora comandava o Paes de Carvalho. Fazia o que sempre desejara fazer. E sempre soubera da sua real importância como comandante de um “gaiola” - como eram denominados esses navios pequenos movidos a vapor -, em tocar tudo aquilo. Às vezes passava por sua cabeça que, sem esses gaiolas e vaticanos, a economia da região não andaria mais nem um centímetro. João de Deus caminhou um pouco mais, cumprimentou alguns passageiros e tripulantes que já haviam acordado, foi ao seu camarote para guardar o diário e então desceu para o segundo convés.
Capítulo III
Em um trecho de rio, distante dali alguns milhares de quilômetros, o sinal sonoro do Paes de Carvalho enchia o ar face à proximidade de Santarém e ao aviso da iminente ancoragem. Nos conveses, os passageiros que seguiriam viagem comprimiam-se na procura ansiosa em divisar os contornos ribeirinhos, das inúmeras praias da cidade. Carregado com mais de cento e cinquenta passageiros e cento e quinze toneladas de carga, o Paes de Carvalho manobrava com dificuldade. Naquele momento, o comandante e seu imediato enfrentavam, além do excesso de peso, o deslocamento da forte correnteza. Para a atracagem no pequeno porto da cidade, João de Deus calculava o ponto exato onde deveria jogar a quilha do navio, pois sabia que o empuxo da força das águas se encarregaria do resto. Era um cálculo absolutamente centrado na experiência, com a visão de distância e velocidade sendo devidamente consideradas.
- Verás a quantidade de carga que entrará no barco, Guilherme! - comentou o comandante. E ainda vamos ter que passar por Alenquer, Óbidos, Parintins e Itacoatiara - completou, preocupado.
- É um absurdo mesmo - concordou o imediato. - Mas as ordens são atulhar o vapor até não poder mais - concluiu irônico.
- E ainda tem as outras localidades e portos para carregar lenhas - observou o comandante, entre apreensivo e impotente. É incrível o que acontece - finalizou.
Não era de hoje que os dois amigos reclamavam das normas impostas pela companhia de navegação para a qual trabalhavam. João de Deus gostava de conversar esses assuntos com o amigo. Sabia da sinceridade e discrição de seu imediato. Na verdade, Guilherme Muller era o único em que ele podia confiar para desabafar essas coisas. Paraense de nascimento, trazia no sangue toda a verdade e ausência de subterfúgios de um descendente de alemães e indígenas. Mestiço, baixinho e musculoso, tinha o rosto redondo e a boca pequena. Possuía também umas bochechas salientes e orelhas de abano, e seu olhar, miúdo e concentrado, era ressaltado por umas sobrancelhas inclinadas para cima, o que lhe proporcionava um ar geral de diabólica aparência. Embora sério e compenetrado em seu ofício de imediato, ele, ocasionalmente, gostava de contar pilhérias. Quando então se deleitava, em risos e gargalhadas, com o comandante.
- O vapor é grande e forte, mas tem limites - finalizou o comandante, sabedor do absurdo que acontecia com aquelas embarcações movidas a lenha.
Tudo começara em 1853, com o aparecimento da Companhia de Navegação e Comércio do Amazonas, pertencente ao Visconde de Mauá e desenvolveu-se com a escalada que fizera o vapor Marajó, entre Belém e Manaus. Um percurso que levava, naquela época, entre ida e volta, mais de vinte dias. A partir daí a Bacia Amazônica fora então, paulatinamente, e conforme as necessidades, invadida por esses “vapores de aviamento” de pequeno calado. Em 1862, com o incremento da produção da borracha, principalmente na região do alto Purus, o navio Pirajá inaugurara toda uma leva de escoamento desse produto para o mercado e, no sentido inverso, trazendo força de trabalho para os seringais e cidades da Amazônia. Companhias como a Fluvial Paraense e a Fluvial do Alto Amazonas disputavam, soberanamente, as linhas estabelecidas. Isso durou até 1872, quando então apareceu o capital inglês da Amazon Steamship Navigation Company, monopolizando praticamente a navegação pela região. E também a Liverpool and Amazon Mail Steamship Company, de Alexandre Amorim que, em 1874, passara para o controle da Singlehurst & Company, incorporada, por sua vez, pela Booth Steamship Company, que navegava internacionalmente. Toda uma economia e colonização se formavam com a ajuda da navegação desses vapores. Geralmente construídos em estaleiros americanos, holandeses ou escoceses, outras companhias de navegação também apareciam, muito rapidamente, e navegavam os rios Purus, Madeira e Juruá. E esses pequenos navios fluviais navegavam com a facilidade de usar como combustível a madeira da própria floresta existente e ao alcance. Foi quando, no rastro dessa história toda, surgiu finalmente, em 1911, e como síntese dessa intensificação, essa tal da The Amazon River Steamship Company Limited. Embora aparecendo em um período de prenúncio do estertor da produção gomífera, seus navios eram mais consistentes e modificados, acompanhando as necessidades e anseios de homens e mulheres da região. E o Paes de Carvalho era um desses. Construído em 1896 no estaleiro inglês Gourley Bros, de Dunder, era mais um dos denominados “gaiola” com superestrutura em ferro e madeira, três conveses, cento e setenta e dois pés de comprimento, trinta e três pés de boca, oito pés de pontal e seiscentos e cinquenta e sete toneladas brutas. Sua capacidade de carga excedia as quatrocentas toneladas. Garboso, nas cores branca e preta, tinha duas hélices de tríplice expansão, fornecendo trezentos e noventa H.P. de força. Dois mastros e uma chaminé proeminente destacavam o conjunto total desse navio fluvial. Possuía tanques para lastro e grandes paióis de carvão, para uma fornalha que podia provocar uma velocidade no vapor de até cento e cinquenta libras. Em seu interior, carregava água potável, máquinas de gelo e até uma câmara frigorífica. No primeiro convés, com seus guinchos e escotilhas, ficava a cozinha e um depósito onde eram acondicionadas as provisões necessárias para os percursos. Do outro lado, próximo à casa de máquinas, localizava-se o camarote da tripulação e demais oficiais subalternos. Em uma parte desse convés, ficavam dispostos animais de quatro patas e um aglomerado de cargas das mais diversificadas. E tudo se espalhava pelos quatro cantos do navio. Borracha, sal, sorva, paneiros de castanhas e farinhas, volumes com querosene e gasolina, tijolo, telha, cabras, porcos, cavalos e bois. No espaço entre as cargas e animais, com seus baús, sacos e trouxas, acomodavam-se então os passageiros da chamada terceira classe. Geralmente nordestinos ou caboclos contratados para trabalhar nos inúmeros seringais ou fazendas espalhadas pela região e que, já a esta altura, com a produção e o consumo da borracha quase totalmente estagnados, abandonavam o trabalho nos seringais, em busca de novas oportunidades em Manaus ou Belém. Toda essa gente amarrava suas redes, lado a lado, em um trançado que sempre dificultava a movimentação. Naquele momento, o Paes transportava mais de cem pessoas nessas condições.
Capítulo IV
Na parada obrigatória de mais algumas horas, naquela manhã, marinheiros aproveitavam o momento para a limpeza circunstancial e necessária do belo barco de linha. Começaram no segundo convés do Paes de Carvalho, onde ficavam a copa, o bar, a despensa e duas compridas mesas para refeições. Nessa parte do barco também estava localizado o camarote do comandante e dos oficiais mais graduados. Próximo dali, existiam alguns especiais, reservados para acomodar passageiros importantes, geralmente representantes de casas comerciais. Logo após esses camarotes, havia um salão de recreio com espaço reservado para fumantes. Ali se viam poltronas luxuosas, cadeiras tecidas em palha inglesa, algumas mesinhas e, escondido a um canto, um pequeno piano. Esse local servia também para as comemorações e jantares especiais a bordo. Mais adiante estendia-se outra fileira de camarotes que - poder-se-ia dizer - compunham o ambiente de primeira classe do navio. E eles limpavam tudo. Ao terminarem os espaços principais, passaram então aos camarotes com quatro beliches, guarda-roupa, lavatório e com vigias e portas protegidas por tela. Locais que, naquele momento, acomodavam quase sessenta passageiros. Na primeira classe, a superlotação e o excesso de bagagens também grassavam. Em cada um desses espaços reservados, famílias aboletavam-se com suas maletas, cestos e paneiros. Nesses locais, a limpeza era mais rápida e superficial. Neles também havia um emaranhado de redes penduradas e objetos espalhados, que dificultavam tudo.
- Comandante! Comandante! - apareceu, gritando esbaforido, um dos homens da tripulação. Havia vindo da cobertura inferior e meteu o rosto na cabina do passadiço, clamando desesperado pela atenção do comandante.
- Que foi, meu rapaz? O que houve? - perguntou o comandante, sobressaltado.
- “Tá” havendo uma briga lá embaixo! - exclamou o homem. - Parece que alguém roubou alguma coisa de alguém - completou.
O comandante tirou o quepe e enxugou o suor do rosto. Contrariado, mais uma vez, por essas coisas acontecerem na sua embarcação.
- Vá lá ver, Guilherme - ordenou o comandante, delegando a tarefa de intervenção ao seu imediato.
- Assim que o imediato saiu para resolver o assunto, o comandante respirou fundo e acalmou-se. Sua concentração deveria ficar totalmente direcionada para colocar a proa do vapor na direção da praia de Santarém, que, a essa altura, já se encontrava bem próxima. João de Deus então acionou, uma vez mais, o sinal da iminente chegada. Aquele era um momento mágico para o comandante. Gostava de aportar escutando aquele som, que parecia saído das profundezas mecânicas do navio. Naquele instante, toda e qualquer dificuldade que por acaso enfrentasse na viagem era então esquecida. João de Deus sabia também que aquele sinal sonoro do vapor despertava os que dormiam e apascentava os exaltados.
No convés inferior, o imediato Guilherme e mais alguns homens não enfrentaram maiores dificuldades para apartar a briga que se formara. Embora os envolvidos tivessem puxado suas facas, a ameaça não passou disso. As mulheres dos dois exaltados intercederam e finalmente descobriu-se que o roubo de uma pequena sacola, motivo da briga, não passara de uma traquinagem de criança.
- Quem for ficar em Santarém, por favor, pegue logo seus pertences! - resolveu ordenar o imediato. - Não quero mais confusão de espécie alguma - rosnou. Vamos! Por favor!
Quando Guilherme já saía de lado para voltar ao passadiço, um homem aproximou-se chorando.
- “Doutô!”
- Sim?
- É que meu filho “tá” com uma febre danada e com uma diarreia que não acaba nunca! - anunciou o homem.
Guilherme suspirou fundo.
- Onde está o menino? - perguntou.
- Ali, naquele canto - respondeu o homem, aflito e enquanto apontava na direção onde o menino estava.
Guilherme aproximou-se e pegou no braço da criança.
- Nossa! - exclamou, ao pegar no menino. - O menino está que é um fogo só - comentou também preocupado e já cheio de cuidados. Mas infelizmente o novo médico de bordo continua em Manaus, esperando a volta do vapor para poder embarcar.
- Eu só preciso dar um caldo de arroz para ver se esse desarranjo passa - observou de volta o pai da criança.
- Vocês vão ficar em Santarém? - perguntou Guilherme.
- Em Óbidos - respondeu o homem, preocupado.
- Nossa! - exclamou Guilherme. E falou: - Vou providenciar o caldo para esse menino e volto já.
O comandante já aproximava o casco do vapor para perto de um barranco, onde sabia que não poderia encalhar. Seu objetivo era fundear o Paes de Carvalho, encostando o portaló a pouco mais de um metro da beirada. Com o barulho das descargas de pressão que o “gaiola” emitia e do par de hélices revolvendo em redemoinhos a água do rio, foram feitas as últimas manobras. Uma das mãos firme no retrocesso da manopla de controle da velocidade e a outra se esforçando para manobrar o leme, o comandante João de Deus preparou-se então para aportar a embarcação. Os ferros rangendo em seu descanso das horas navegadas e as máquinas silenciando lentamente, a âncora foi lançada. O momento certo para que os passageiros, que iriam sair e os tripulantes que iriam descansar, procurassem arrumar seus pertences. Feita a parada total do navio, o comandante relaxou os braços e desviou o olhar para o pequeno município de Santarém. Não era a primeira vez que ele aportava nas imediações daquela cidadezinha do estado do Pará. Lugar de uma antiga aldeia indígena, Santarém, vista de bordo, tinha a silhueta de um lugar aprazível que descansava, indolentemente, às margens do encontro dos rios Tapajós e Amazonas. Muitas casas de madeira e algumas construções mais antigas formavam seu núcleo urbano. Ali, o Paes de Carvalho sempre deixava muitos passageiros, mantimentos e reses. Mas, como a economia do município voltava-se para a produção da castanha, da borracha e para a criação de gado, o navio também sempre recebia, abundantemente, outro tanto de passageiros e dessas cargas específicas.
- Comandante!
O imediato apareceu no passadiço com o semblante carregado de extrema preocupação.
- E a briga, terminou? - perguntou João de Deus.
- Já! - informou o imediato. - Mas eles chegaram a puxar facas, comandante! - exclamou, assustado.
- Qualquer dia desses acontece um crime a bordo - observou o comandante.
- Doenças também não faltam - continuou o imediato. - O senhor já sabe que tem um doente lá embaixo? - completou, querendo ampliar a atenção do comandante.
- Quem é?
- Uma criança que está indo para Óbidos e que está com muita febre e uma diarreia danada - relatou o imediato, num rompante.
- Muito mal? - perguntou o comandante, preocupado.
- Parece que sim - respondeu o imediato.
- Então é melhor providenciar que fique aqui mesmo em Santarém.
- Vou ordenar para o nosso cozinheiro preparar um caldo de arroz para o menino e depois vou ver se arranjo algum lugar para eles ficarem por aqui - disse o imediato, concordando.
- Faça isso, por favor - agradeceu o comandante, enquanto saía da cabina para respirar um pouco de ar puro.
A noite já começava a apresentar-se. Algumas estrelas apareciam lentamente no céu. O comandante João de Deus olhou para uma dessas estrelas e pensou em Helena, sua esposa. Deixara-a sozinha em Belém e pensava agora em seu rosto jovem e suave. Helena era amazonense. Quando a conheceu, já comandante de um navio mercante, foi amor à primeira vista.
Era uma mulher de personalidade forte e decidida. Filha de um coronel de barranco, formara sua personalidade nas entranhas de um seringal do alto Juruá. O pai falecera há alguns anos e toda a riqueza do seringal, de certa forma, fora embora com ele. Com ele e com a exaustão do próprio ciclo econômico daquele látex milagroso. Dezessete anos de casados, viagens intermináveis do comandante e nove filhos nascidos não afetaram a paixão que se instalara entre os dois. Helena e João de Deus eram românticos um com o outro o quanto era possível ser. Quando da primeira viagem do comandante, logo após se casarem e ainda morando em Manaus, Helena pediu a João de Deus que, caso sentisse saudades dela, olhasse para a estrela mais luminosa do céu. Onde quer que estivesse. Pois ela também faria o mesmo em relação a ele. Naquele dia de promessas, tiveram a ideia de cortar uma mecha de seus cabelos. Um pacto que Helena e João de Deus haviam selado para se terem sempre u perto do outro. Ainda pensando carinhosamente na esposa e nos filhos, o comandante resolveu passar uma revista no barco.
Era um hábito seu, nessas horas crepusculares e com o barco parado em algum porto, andar pelo convés por um longo espaço de tempo antes de deslocar-se até seu camarote. Nesses momentos, costumava verificar cada reentrância do Paes de Carvalho, como se estivesse em sua casa. Admirava, como ninguém, a robustez e a força daquele vapor. Com ele já passara por muitas situações adversas nos rios amazônicos. Certa vez, o navio chocou-se com um tronco que flutuava. O choque fora tão violento que entortou o eixo e rasgou as esferas, provocando a quebra das hélices. Por algumas horas, o Paes de Carvalho ficou à deriva. O comandante teve de ficar à mercê de uma forte correnteza, enquanto fazia manobras arriscadas e com o máximo de cuidado, tentando levar o vapor para as proximidades da encosta de um barranco e assim poder lançar âncora. Imediatamente, uma equipe de homens foi destacada para verificar as avarias. Com mergulhos sucessivos e perigosos, começaram a fazer os reparos necessários e a troca de peças. Outra ocasião, durante o inverno, o navio quase encalhou de forma irreversível. Com os rios na vazante, e devido à abundância de bancos de areia e pedras ameaçadoras que se apresentavam à frente, o vapor teve dificuldades de navegação por um determinado trecho. Só a muito custo o comandante e o prático conseguiram evitar o pior. Muitas vezes houve a necessidade de aguardar a subida das águas para alcançar determinadas regiões do rio Purus. E a espera era longa e ansiosa.
- E o menino? - perguntou o comandante, assim que o imediato retornou, retirando-o de seus pensamentos.
- Já desceu com os pais - respondeu o imediato. - Também foi providenciado para que fosse internado no hospital da cidade - completou. Combinei com os pais de pegarmos eles na viagem de volta.
- Então está certo - disse o comandante - vamos jantar e descansar um pouco, pois à meia-noite retomaremos a viagem.
- Certo, comandante.
O comandante ordenou então para apagarem todas as luzes do convés superior e tomou o rumo de seu camarote. A essa altura, os passageiros que iriam ficar em Santarém já haviam descido todos. Só um movimento de despacho de cargas ainda permanecia sendo controlado pelo conferente. Após um rápido jantar, o comandante retornou ao camarote e deitou-se para descansar. Deu um longo suspiro e fez uma massagem em sua perna defeituosa. Lá fora, ele escutava os sapos coaxando e o barulho da correnteza movimentando as águas. Aquele marulho do rio afogava os pensamentos daqueles homens, em um sono que chegava lentamente. Eles sabiam que, naquela situação, seus descansos seriam efêmeros. Até a hora de uma nova partida.
Capítulo V
Às vinte e duas horas daquela noite, o espaço vago do Paes de Carvalho começou a ser novamente preenchido. Cargas, mantimentos, homens e reses, ocupavam seus limites apertados. Tudo devidamente controlado pelo escrivão e por alguns outros membros da tripulação. O burburinho provocado pela arrumação tornava-se um despertador natural para o comandante e para todos os que porventura ainda estivessem dormindo. João de Deus levantou-se, vestiu a farda e logo se viu no passadiço, ultimando os preparativos para o reinício da viagem. Passados alguns minutos de preparação para a saída do barco, um trovão ribombou a sudoeste. Nuvens carregadas de um cinza ameaçador começaram a cobrir o céu em volta e acima do navio. Uma ventania logo se formou, desencadeando uma inquietação a mais para o comandante. Ele sabia que aquela chuva fina num instante engrossaria, fechando a visão do rio e encrespando de banzeiros nada agradáveis a sua superfície. Quando o navio levantou ferros, o ângulo de visão era mínimo.
Deixando o cais excessivamente abastecido de cargas e passageiros, o Paes de Carvalho cortava, resoluto, uma espessa cortina líquida de chuva. Com o comandante acionando insistentemente o sinal sonoro, o vapor deslocava-se, tropegamente, em direção a Alenquer. Naquele município, o Paes de Carvalho deixaria apenas uns poucos passageiros importantes, para logo em seguida deslocar-se até Óbidos, a próxima parada. Através do agulheiro, em direção à fornalha, os carvoeiros abasteciam-na com as lenhas. Lá fora, uma fumaça preta lutava contra a chuva, lançando seu fumo através da chaminé do navio.
Após navegar algumas milhas e com a chuva já amainando, o Paes de Carvalho começou a enfrentar uma neblina e um frio cortante. Naquele momento, a madrugada gelada do rio penetrava em todos os recantos e poros. No vapor, animais não faziam nenhum movimento. Em seus leitos e redes, as pessoas enroscavam-se o mais que podiam à procura de um pouco de calor. O matraquear constante das máquinas do vapor e o tossir esporádico de alguns passageiros eram os únicos barulhos passíveis de se escutar. O rio, escuro como breu, era iluminado apenas pelo facho de luz de dois possantes holofotes, localizados na proa. Na cabina de comando, o comandante João de Deus, seu imediato e o prático Josino Palheta, conversavam tranquilamente, procurando passar o tempo. Josino, conhecido como um excelente contador de estórias, dominava a conversa. Amazonense e piloto da Amazon River, fora, durante alguns anos, prático no rio Juruá. Conhecera o comandante João de Deus quando este ainda pilotava o navio Índio do Brasil. Era um homem de compleição atarracada e de olhar aguçado. Com uma calvície incipiente, usava um bigode espesso que lhe cobria parte da boca temerosa. Apesar do semblante quase sempre sério, Josino era um bom companheiro. Além de ser considerado um dos mais experientes práticos que singravam os inúmeros rios, furos e paranás da Amazônia. Suas estórias sobre o que enfrentara como piloto, navegando por aqueles rios, beiravam o cúmulo do absurdo e o máximo do heroísmo. Navegações impossíveis, em épocas de vazante dos rios. À procura dos canais aptos à navegação; evitando tabatingas e bancos de areia; à espera de repiquetes demorados. Estórias de acidentes e dramas pessoais. Josino trabalhara no vapor, o Tabatinga, e escapara por um triz de um incêndio que destruíra aquele navio há alguns anos.
- Tudo devido a uma garrafa de cachaça que “estava onde não deveria estar”, dizia. - Uma vez - continuava o prático -, eu estava no São Luiz quando apareceu um surto de bexiga, comandante. Foi uma desgraça só! Começou com um dos passageiros. Logo que soube do fato, o comandante do São Luís deixou o pobre coitado no primeiro barracão que encontrou no caminho. Mas ninguém aceitava o danado do homem. Apareceu até um homem armado que nos ameaçou. Ou a gente arredava pé de perto do barranco, ou então ele metia bala. Resolvemos então isolar o indivíduo lá no finalzinho da popa. Mas não adiantou não. Aí a doença começou a se espalhar pelo vapor e muita gente morreu. O comandante então deu ordens “p´ra” gente ir enterrando os mortos pelo caminho. Foi horrível! A gente parava, descia, e enterrava os corpos pelas praias e ribanceiras.
- Deve ter sido mesmo - comentou Guilherme, que também escutava toda a conversa.
- E a varíola ainda deve ter atingido muitos municípios, seringais e aldeias indígenas - observou o comandante.
Josino mantinha as mãos firmes no timão. Seus olhos estavam assustados, acompanhando o facho de luz dos refletores. O rio trazia inúmeras lembranças para aqueles homens. E logo amanheceria.
Capítulo VI
“Ontem, quando estávamos chegando a Santarém, fiquei sabendo de uma briga durante a qual os indivíduos até facas puxaram. Ainda bem que nada aconteceu de mais grave. O que venho notando é que essas desavenças se tornam cada vez mais constantes nos vapores. Soube de crimes em portos; e até a bordo. É a miséria dessa gente que é total. São doentes e têm fome. Os seringais estão acabando e essa gente está perdida. O olhar de suas crianças é sem vida. Mas as mulheres parecem mais fortes que os homens. São resignadas e secas. Seus olhares têm algo de uma loucura controlada. Todos vieram de longe em busca de empregos nesses seringais e em Manaus. Como contratados de uma ilusão. Muitos desses nordestinos ranhetas iludem-se em busca de um trabalho que já está minguando. Coitados. O destino dessa gente talvez seja morrer de malária ou fome, com a água do suor, da febre e da floresta úmida molhando seus corpos e exaurindo suas almas. Mas, o que sempre vou me lembrar dessa gente, logo quando apareceram por aqui, principalmente dos homens, é a maneira engraçada como se vestem. É um tal de chapéu de carnaúba, esquisito como só, que parece lhes achatar as feições. Costumavam usar alpargatas e duas tiras de pano bento ao pescoço. E uma faca de ponta à cintura. Mas, o mais gozado é a maneira de falar deles. Um menino adoeceu a bordo. O Guilherme providenciou para que ficasse em terra com o pobre do pai, que nem tinha onde cair morto”.
Aquela manhã estava agradável. Céu e rio formavam uma imensidão só, com o Paes de Carvalho seguindo, plácido e firme, o seu rumo. A pressão da fornalha estabilizara o movimento das máquinas do vapor, numa velocidade de duas milhas e meia. Três maquinistas, quatro foguistas e dois carvoeiros suavam para isso acontecer. Toda a tripulação do Paes de Carvalho, no total de trinta e três pessoas, entre despenseiros, marinheiros e praticantes, exercia seus afazeres de todos os dias. Fortes e atarracados caboclos, vestidos com aquelas fardas de calça e camisa de algodão branco e um chapéu de aba circular, escovavam o tombadilho. Praticantes, com suas camisetas em listras horizontais, procuravam auxiliar no que fosse possível de ser feito a bordo.
- Josino! Acho que o barco está perdendo pressão - alertou o comandante, chamando a atenção de seu prático. - Vá lá embaixo e peça para o Guilherme dar uma olhada no trabalho dos carvoeiros, por favor - pediu solícito.
- “Tá” certo, comandante! - aquiesceu o prático.
Quando o prático saiu, o comandante deixou o diário de lado, pegou o timão e começou a olhar com mais atenção para o rio. Com o sol saindo forte, aquele mundo líquido resplandecia de reflexos prateados que ofuscavam a vista. João de Deus ficou imaginando a quantidade de peixes que poderia estar circulando no interior daquela massa absurda de água. Mais adiante, quando o leito do rio começou a estreitar, o que o comandante passou a admirar foi a densa vegetação que se mostrava às beiradas. Um emaranhado de árvores congraçadas numa especial harmonia silenciosa, após uma disputa ferrenha. Embora sempre fizesse aquele trajeto e sempre visse as mesmas coisas, João de Deus não deixava de apreciar aquela diversidade toda da flora amazônica. Ali, indivíduos de diversas espécies vegetais comprimiam-se, como a expressar um desejo de invadir o rio. Em relação àquela vegetação, ao longo de certos trechos, o comandante conhecia algumas árvores como companheiras sempre presentes e à espreita das embarcações. Eram as mesmas árvores que pareciam acenar quando da sua passagem: uma extensa cabeleira de selva compacta que se projetava, graciosa e misteriosa, nas beiradas dos extensos rios. Eram apuizeiros, sumaumeiras, diversas palmeiras, imbaúbas, gutíferas de diversas formas e desenhos. Lianas entrelaçadas e simbióticas ou competindo entre si. O verde, em sua expressão de força e beleza, e em margens sinuosas de rios portentosos. E quem aguçasse bem os olhos, poderia ainda divisar, em meio àquela selva toda, bichos os mais curiosos possíveis. Eram garças, macacos do tipo guariba, jaburus, capivaras, caititus e até cobras, penduradas preguiçosamente em galhos retorcidos de árvores buliçosas. Mas, o vapor também roçava rios com seus barrancos de terras caídas, de vegetação maneira e bichos ausentes. Nesses momentos, o comandante João de Deus via a face triste de uma solidão bem presente. Principalmente nas margens de um Solimões fremente. E no meio dessa visão toda, cidadezinhas esquecidas e localidades insulares e sem esperança, pontilhavam, aqui e acolá, suas existências indolentes. Em certos momentos, quando da passagem de um demorado e tão esperado vapor, caboclos espantados e sedentos reuniam-se naqueles barrancos íngremes, como em comemoração a uma festa. E vinham então os “gaiola” que, quando paravam, traziam cartas, remédios e pedidos. Traziam a vida. Prendiam seus corações. Deixavam saudades.
Mais tarde, com o sol mais alto e o trabalho quase incessante dos carvoeiros colocando lenha na fornalha, o interior do navio parecia uma extensão do próprio inferno. Alguns passageiros do primeiro convés, não aguentando o suor constante e na procura desesperada por afastar aqueles variados e aziagos odores, recolhiam, em recipientes improvisados, a água do rio para banharem seus rostos. E na primeira classe, os passageiros, desvencilhados de suas grossas roupas de fino linho inglês, andavam pelo navio vestidos apenas levemente e em busca de algum lugar onde pudessem esticar suas pernas e enxugar seus suores e reclamos. A maioria parecia imersa em pensamentos e atitudes inconformadas. Alguns homens, comerciantes abastados, haviam se dirigido até o salão de recreio para poderem fumar seus cachimbos e charutos ou bebericarem algum líquido refrescante. Estirando seus gordos corpos molhados em estofados acetinados, desfiavam lamúrias e sonhos, na busca da resolução de seus destinos econômicos. O rio, abrindo-se num estirão de água que lhes retirava qualquer tentativa de uma pressa. E o comandante observava-os de longe, procurando captar os seus sentimentos, quando apareceu na cabina o escrivão do vapor.
- Oh! Américo! - exclamou esfuziante o comandante. - Que bons ventos o trazem aqui, ó recém-casado!? - continuou o comandante, com sua alegria e simpatia de sempre.
O escrivão riu, conhecedor das maneiras brincalhonas de seu comandante. Português da cidade do Porto, Américo Cabral viera para o Amazonas em 1905, com apenas quatorze anos, para trabalhar com um irmão comerciante. Era um homem de aparência distinta, porém melancólica. Fazia o tipo caladão. Tinha a fronte alta, o queixo quadrado e o olhar com um seguro par de olhos azuis, que muito impressionavam as mulheres. O nariz era reto e exato. Não era muito alto, mas sua presença era sempre notada onde quer que estivesse. Trabalhara algum tempo em Manaus com o irmão, e, em 1917, conseguira o emprego de escrivão, uma espécie de conferente de carga ou guarda-livros, na Amazon River. Gostava desse trabalho. Era um trabalho que exigia constante observação e controle. E, o mais importante, fazia-o viajar bastante. Espírito aventureiro e inquieto, Américo não poderia nunca continuar atrás de um balcão de comércio. E outro motivo, que aparecera para continuar com esse seu desejo de estar em um barco, fora a perda da primeira mulher, há três anos. Em consequência disso, ficara desgostoso em estabelecer-se em algum lugar. Porém, no começo daquele mês, casara-se novamente e seus planos então haviam mudado.
- Preciso falar com o senhor, comandante - disse o escrivão, enquanto entrava na cabina de comando.
- Pois não, amigo - respondeu de imediato o comandante - sou todo “ouvidos” - completou.
- É sobre uma decisão que tomei depois de muito pensar - continuou o escrivão. Em seu semblante, notava-se uma ponta de contrariedade.
- O que te preocupa? - perguntou o comandante.
- É que, bem, o senhor sabe - titubeava o escrivão -, estou casado novamente ... E ... bem ..., as coisas mudaram um pouco ... O senhor sabe que gosto da vida a bordo.
- Sim, sei.
- E que nesses anos todos que trabalhamos juntos eu nunca tive motivos para me queixar - continuou - Pelo contrário, se não fosse o senhor e este navio eu não saberia como enfrentar a perda dolorosa que foi a morte da minha primeira mulher - concluiu, entre pesaroso e agradecido.
- Deixa disso, rapaz - aquiesceu o comandante.
- O fato é que tenho uma filha que sente minha falta e a minha mulher, agora ...Bem ... O senhor sabe.
- Põe logo para fora o que o senhor quer dizer - apressou-o o comandante.
- É que estou pensando em abandonar a navegação fluvial! - disse o escrivão. E continuou: - Vou voltar a trabalhar por conta própria, no comércio.
- Ah! Ótimo! Entendo perfeitamente - disse o comandante, abrindo um largo sorriso. E o que pretendes fazer?
- Durante esses anos todos, eu fui juntando um dinheirinho - explicou o escrivão. - Sabe como é, só tinha uma filha e gastava pouco e acho que dá “p´ra” comprar uma casa espaçosa e transformar em uma pensão - disse ainda, com um sorriso no rosto.
- É uma ótima ideia! - exclamou o comandante. - Mas a companhia vai perder um excelente escrivão - ressaltou João de Deus.
- Planejo viajar com o senhor até o final deste mês e depois pedir para sair da companhia.
- Está certo, senhor Américo - concordou o comandante. - Pelo menos teremos o prazer de ter o senhor conosco até o final do mês - observou sorrindo.
- Depois volto para Belém e lá entro em contato com o escritório e resolvo outros assuntos, antes de solicitar minha dispensa - disse o escrivão.
- Está tudo muito certo, senhor Américo - concordou o comandante. O senhor é quem manda - finalizou.
A viagem transcorria na maior normalidade possível. Fora contratempos ocorridos, quando do transporte de lenhas em paradas obrigatórias e a rápida passagem por localidades no trecho da rota, o Paes de Carvalho continuava seu rumo previsto. Ocasionalmente, se encontrava com outro vapor que fazia o sentido inverso ao seu. Era quando então uma troca de sinais sonoros entre os comandantes enchia os ares ribeirinhos e provocava o aceno de lenços e chapéus, por parte dos passageiros das respectivas embarcações. Mais algumas paradas e alguns dias ainda e o navio estaria entrando no Amazonas. E, se não houvesse nenhum imprevisto, daqui a nove dias de viagem, o Paes de Carvalho estaria aportando em Manaus. Após algumas milhas a mais navegadas, o comandante, do alto de seu posto, começou a perceber que o sol se inclinava para o poente. Aquele momento proporcionava um espetáculo de cores e matizes fabulosos no rio. O azul do céu descansava e dava lugar a um vermelho dramático de fim de mundo. Revoadas de aves de todos os tamanhos cruzavam o espaço, em busca de pouso e aconchego em algumas árvores. A noite aproximava-se lentamente, afogando em tristezas toda uma região. Logo um incrível explodir de estrelas cobriria todo o manto do céu. Como era noite de lua cheia, a presença enorme e luminosa daquele astro seria a mais notada. Mas rivalizaria com as chamadas estrelas cadentes, as quais cruzavam o céu aos borbotões. Essa seria a visão disponível a qualquer passageiro daquele vapor. O comandante estava imerso nesses pensamentos, com a presença silenciosa do prático ao seu lado, quando, de repente, escutou gritos vindos do convés inferior.
- Parece uma briga - comentou, virando-se para o imediato.
- Será novamente briga de arigó? - indagou Josino.
- Vou verificar - disse o comandante.
Quando João de Deus se preparava para descer até o segundo convés, dois marinheiros apareceram segurando um tapuia pelos braços. O homem debatia-se e gritava quase incontrolavelmente. O tapuia parecia ter mais de cinquenta anos, cabelos embranquecidos e um corpo atarracado e curtido pelo sol. Vestia calça e jaqueta brancos, totalmente sujos e encardidos.
- Que é isso? - perguntou o comandante. Sua face demonstrando o vigor de quem é a autoridade no navio.
- Um indígena bêbado, comandante - respondeu-lhe um dos marinheiros.
- Quebrou a garrafa de aguardente que bebia escondido e disse que ia matar tudo que era “arigó” - completou o outro marinheiro.
O tapuia agora sorria idiotamente, falando numa língua estranha. - O que ele está dizendo? - perguntou o comandante.
- Não sei muito bem, não, comandante - disse um dos marinheiros. - Mas parece que é nheengatu - fez observar com certa autoridade.
- Que é que a gente faz com ele, comandante? - perguntou o outro marinheiro.
João de Deus tirou o quepe da cabeça, enxugou o suor da testa e falou.
- Deem um banho de água fria e depois tragam-no até mim.
Quando o comandante ia iniciar a volta até a cabina, apareceu o imediato.
- Que foi que houve, João? - perguntou o imediato.
- São esses silvícolas que trazem bebida e passam dos limites - resmungou o comandante.
- É realmente lamentável - observou o imediato. - Esses coitados não sabem nem o que estão fazendo em nosso mundo - continuou. Por isso, quando têm uma garrafa de aguardente, bebem até cair.
- Sabe, Guilherme - recomeçou o comandante com um semblante carregado de uma expressão penalizada -, eles nunca deveriam ter saído de suas aldeias. - Mas - continuou -, querem trabalhar com qualquer coisa e ganhar dinheiro para beber. E depois morrem pela ponta de uma faca ou então vomitando o próprio sangue. Uma pena.
O comandante sabia do que falava. Conhecia bem a trajetória desses indígenas que vinham até o barco. Não era de hoje que observava a atitude retraída e desconfiada dessa gente. A maioria só se soltava após uma grande bebedeira. Nesses momentos, o que aparecia era triste e às vezes tragicômico. O álcool fazia-os falarem principalmente da vida em suas tribos. Dançavam e xingavam em seus dialetos esquecidos. O comandante, nesses momentos, lamentava apenas não poder entender bem o que diziam. Em Manaus e Belém, às beiras dos portos e em esquinas de armazéns, essa gente desesperada, expulsa de suas tribos e manipulada pela ganância dos últimos tempos, proliferava em busca de trocados e sobrevivência. Alguns indígenas, de mais sorte, empregavam-se em casas de particulares ou ainda viviam em alguns seringais remanescentes. Mas a maioria estava vivendo às margens da vida dos brancos. Sem aldeias ou dignidade. Perdidos nas beiras dos imensos e caudalosos rios de suas existências. Sema mais condições de continuar aquela conversa, o comandante esperou o tempo passar um pouco mais para ser rendido e então dormir em seu camarote, esquecendo de tudo.
(...)
Óbidos projetava-se já a uma certa distância do Paes. Um minúsculo povoado com uma geografia singular, composta de serras e cavernas, e que, desde sua fundação, em 1758, ficara quase esquecido no tempo e no espaço. Talvez por estar localizado na fronteira de um estado ainda em litígio com outro, ou talvez devido aos recentes acontecimentos políticos da região, esse esquecimento do município havia aumentado ainda mais nos últimos anos. Óbidos mantinha-se com dificuldade através de seu extrativismo incipiente e inexpressivo. O panorama era de extrema pobreza e miséria. Um pouco de esperança só aparecia nos olhos dos caboclos quando da chegada de mais um “gaiola”. Mas nada que pudesse alterar a vida econômica daquele lugarejo. O Paes de Carvalho ficaria encostado em Óbidos cerca de duas horas. Não havia muito o que despachar naquele lugar.
Após a parada do “gaiola”, o comandante dirigiu-se até onde se encontrava o indígena que armara um escândalo a bordo. O silvícola havia tomado banho e estava estendido, já vestido, a um canto do navio. Um dos membros da tripulação tinha sido escalado para vigiá-lo de perto.
- Como vem se comportando o índio? - perguntou o comandante ao tripulante.
- Está melhor, depois do banho de água fria que tomou - respondeu o tripulante. - Mas ele está querendo falar com o senhor, comandante - observou. Parece que tem algo muito importante a lhe contar.
- Ah, é!? - exclamou o comandante, entre surpreso e assustado, achegando-se para mais perto do indígena que, naquele momento, fitava-o com olhos de uma pessoa alucinada. Mas, para João de Deus, não havia nenhum receio mais significativo. Pelo contrário, sempre se interessara em saber o que esses indígenas tinham a dizer. Em Manaus, na casa da mãe de sua mulher, circulavam muitos indígenas e caboclos oriundos dos seringais. Muitos vinham atrás de tratamento médico na cidade ou em busca de emprego e acabavam encontrando pousada na casa de sua sogra. E todos sempre contavam suas estórias esquisitas; inventadas ou repletas de verdades.
- Tudo bem? - perguntou o comandante, dirigindo-se ao indígena.
O indígena deu um largo sorriso, quebrando o próprio gelo.
- O rapaz aqui me disse que o senhor tem alguma coisa para me dizer - continuou o comandante, procurando fazer-se entender.
O indígena balançou a cabeça, parecendo confirmar.
- Mas você sabe falar nossa língua? - indagou o comandante.
- “Séi”, sim - disse o indígena
- Pois o que o senhor quer me falar?
- “Éu teve um sónho!” - respondeu o indígena de imediato e arregalando os olhos negros.
O comandante ajeitou o colarinho, compreendendo o que o indígena dissera.
- Que sonho o senhor teve? - perguntou curioso.
- Com o “sénhor” e “éste” vapor! - disse o indígena, apontando no rosto do comandante.
O comandante respirou fundo. Sempre soubera que esses indígenas, em suas tribos e sob o efeito de drogas, tinham visões do além e conseguiam, com isso, prever o futuro. Isso sempre o intrigara e o fazia respeitar, sem muita dúvida, os poderes dessa gente da floresta. Suas superstições, após anos de navegação por aqueles rios, tornaram-se imensas e ele aprendeu a acreditar em muita coisa estranha que acontecia nesse mundo da selva e dos silvícolas.
- E foi bom ou mau esse sonho? - indagou o comandante, procurando sorrir e não demonstrar preocupação com o que indígena dissera.
- “Déixa éu contar uma cóisa” - disse o indígena, aparentemente tentando mudar de assunto.
O comandante não sabia o que dizer.
- “Luaka iýpyrungaua ramé ntyo raen paa aikué tatá!” - disse então o indígena, num rompante.
- O que isso significa; o que é? - perguntou o comandante.
- “Cómandante”, tem que “tê” cuidado - alertou o indígena. - “Omanu riré iakaré aetá opirare i marika, osekare i pýpé tatá, ne auá!” - disse. Vapor é “cómo” jacaré.
João de Deus coçou a cabeça, intrigado com as palavras enigmáticas que aquele indígena externava.
- O que o senhor quer dizer com isso? - insistiu o comandante.
- “Ô sénhor tém que tê cuidado cóm ô rabo do navio p´ra não prender” - ressaltou o indígena.
- O que foi que o senhor sonhou, afinal? - continuou o comandante.
- “Éu sónho” muita coisa - respondeu o indígena. - “Recebi éste pôder de méu pai; e méu pai recébéu de pai déle” - afirmou, orgulhoso. “Muito témpo” - continuou - “qué vénho tendo sónho que mostra o que vai nô mundo”.
- Como assim? - perguntou o comandante, interessado com o que o indígena dissera.
- “Floresta e animais da floresta falam durante o sónho de índio. Existe sinal dê mudança munto grande!” - exclamou o silvícola. “Mudança dê perigo” - finalizou, exacerbando seus gestos.
O comandante sorriu. De repente passou pela sua cabeça que aquele índio talvez estivesse louco ou blefando. Fez então um sinal para o seu tripulante, dando a entender que sairia dali de perto do índio, mas que mantivesse a vigilância em cima do homem. Antes perguntou.
- O senhor está indo para Manaus?
O indígena balançou a cabeça e falou:
- “Vóu pá Manaus; si; lá ónde ô mundo comêça e ónde um dia vai acabá!” - respondeu, enigmaticamente.
Capítulo VII
Óbidos e seu forte histórico ficara para trás já há algum tempo. O Paes de Carvalho agora se aproximava de mais um dos inúmeros portos de lenha que ainda se espalhavam por aquela rota. Naquele momento, o vapor já vinha em velocidade reduzida. Como a pressão da fornalha caíra abaixo do normal e a lenha era pouca, tornara-se de extrema necessidade parar novamente para abastecer. Manobrando aquele “gaiola”, com habilidade e destreza, o comandante João de Deus tentava desviar-se de algumas canaranas e troncos de árvores meio submersas para poder se aproximar do pequeno porto. Com a visão do vapor aproximando-se, os lenhadores e moradores do povoado - na verdade, um aglomerado de poucas casas feitas de palha e algumas cabanas cobertas para abrigar a lenha - levantavam-se de suas redes e corriam para abastecer o navio. O Paes de Carvalho era o único vapor a encostar no porto àquela hora. Ainda era cedo para os outros que inevitavelmente viriam aportar ali. Dentro de mais algumas horas, a atividade de abastecimento de lenha naquele lugar adquiriria aspectos de um ritmo frenético e barulhento, com o porto de lenha ficando totalmente apinhado, com dezenas de barcos abastecendo ao mesmo tempo.
O carregamento dessa lenha era uma atividade interessante de se ver. Pedaços de madeira com mais de um metro de comprimento eram retirados de amontoados, dispostas próximo às cabanas e transportados nos ombros de fortes caboclos. Cerca de uma dezena de homens, em organizada fila, a deslizarem seus pés descalços por íngremes barrancos. Despachando, lépidos, as madeiras em achas mediante pranchões balouçantes. No interior do vapor, algumas dessas lenhas iam diretamente para a boca sedenta da fornalha. Outras eram devidamente arrumadas pelos carvoeiros em um canto do navio. Nesse momento, os passageiros aproveitavam para relaxar. Alguns iam até a terra e fumavam prazerosamente seus charutos; outros, bebiam alguns tragos de uma bebida qualquer. O comandante, posicionado na altura do portaló, observava conscienciosamente o movimento do transporte das lenhas, na expectativa de que terminasse logo para reiniciar a viagem. Embora seus olhos não se despregassem um minuto sequer daquela observação, seus pensamentos estavam em outro lugar. Em seu íntimo, o comandante pensava em sua nova casa, em Belém. Estava de mudança com toda a família e encontrara uma ampla casa de dois andares, com um enorme quintal, cheio de árvores frutíferas na Rua Batista Campos. O comandante ainda estava absorto, pensando nos filhos, quando uma voz o retirou de seus devaneios.
- Comandante!
Um passageiro aproximou-se lentamente. Homem de meia-idade e aparência distinta. Vestia um terno cinza e usava um chapéu de feltro da mesma cor. O rosto era branco como uma vela e a boca tinha lábios carnudos. Um par de óculos de aro redondo emoldurava os pequenos olhos.
- Pois não? - respondeu o comandante querendo atender ao passageiro.
- Vai demorar muito para chegarmos a Manaus? - perguntou o homem.
O Comandante aprumou-se, pigarreou um pouco e respondeu.
- Mais uns cinco dias de viagem e estaremos no porto.
- Tudo isso!? - exclamou o homem, duvidoso.
- É a primeira vez que o senhor viaja pela região, não é? - perguntou o comandante, desconfiado de que aquele homem fosse passageiro de primeira viagem.
- Sim.
- Acalme-se e relaxe - aconselhou o comandante, sorrindo. - Ainda temos um estirão de mundo pela frente - fez observar.
O homem sorriu também. Mas justificou-se.
- É que estou ansioso para conhecer Manaus.
- Então o senhor está a passeio?
- Exatamente - respondeu o homem. - Permita-me que me apresente - continuou. Chamo-me Euclides Galvez de Sá e sou jornalista na capital.
- Prazer, comandante João de Deus Cabral dos Anjos.
- Estou percorrendo a região a passeio e aproveitando para coletar dados para uma matéria jornalística - disse o homem. - Impressões de viagem - explicou.
- Infelizmente - sinto afirmar -, o senhor não vai colher boas impressões - continuou o comandante. - Manaus é uma cidade que está morrendo gradualmente - explicou pesaroso. Tudo está muito triste naquele lugar.
- É, eu soube que a crise da borracha agora é violenta e desarticulou tudo - observou o jornalista.
- A borracha começou a perder terreno mais ou menos há uns doze anos - declarou o comandante. - De lá para cá a crise só fez aumentar - ressaltou. Inclusive o número de barcos circulando está diminuindo a cada ano. Não é mais como há vinte anos. Naquele tempo, a fumaça dos vapores enchia os ares, doutor. E era borracha que não acabava mais! Agora, com o preço da borracha no mercado internacional bem baixo e a oferta do látex da Malásia de vento em popa, as coisas ficaram pretas e...
- E a cidade de Manaus? - cortou o jornalista.
- Como assim? - perguntou o comandante, entre indeciso e querendo descobrir o que mais o homem gostaria de saber.
- Como tem reagido à crise? - explicitou Euclides.
- A cidade, como lhe falei, já não é mais aquela - respondeu o comandante. - Parte do comércio já fechou as portas e muitas casas aviadoras não existem mais - completou. Pessoas que lá moravam e trabalhavam debandaram há tempos. Revoltas do povo, bombardeios. Faz dois anos que - o senhor deve saber -, uma refrega das brabas aconteceu na cidade e em Óbidos. Lá, inclusive, é que houve o tal bombardeio.
- E o governo? - perguntou o jornalista.
- Nem queira saber! - exclamou o comandante, contrariado. - Na época o governador Rego Monteiro estava gastando na Europa - afirmou. Ainda bem que, com a ajuda do povo, essa gente foi deposta.
- E como está a situação hoje?
- De mal a pior - revelou o comandante. - A cidade está insolvente e o funcionalismo público relegado às traças - continuou revelando, pesaroso. No porto, não faz muito tempo, houve inclusive greves de estivadores.
O jornalista puxou o ar profunda e imediatamente um silêncio instalou-se entre os dois. Seus olhos desviaram-se para a movimentação das lenhas que entravam no vapor, carregadas por aqueles homens fortes e resistentes. O comandante, em seu íntimo, cultivava pensamentos que o levavam na direção de enormes dúvidas e fantasmagóricas premonições. O jornalista, ainda sem entender muito bem as verdades e mentiras daquela região, pensava de maneira ainda de maneira incerta e superficial. Para ele, tudo era novidade e mistério. Aquele mundo verde, de homens marrons, queimados pelo sol, formava um quadro fantástico e impressionante a seus olhos. A força, a fraqueza, a destreza, a perseverança, eram adjetivos poucos para qualificar esse povo inserido neste contexto. No interior da selva, bem longe do restante do país, havia um drama, de atos infinitos, a desenrolar-se. E ele era apenas um espectador privilegiado disso tudo. Sabia que haveria muitas histórias ainda a serem ouvidas e assimiladas.
- Quanta madeira esse mundo tem - comentou o jornalista, ao conseguir situar seus olhos no transporte daquelas lenhas.
O comandante também desviou a trajetória de seus pensamentos.
- E é uma madeira boa - disse. - Mas o senhor sabia que não é nenhuma madeira que serve para a caldeira - começou a explicar, procurando atiçar a curiosidade do jornalista sobre o funcionamento do seu navio. Usa-se só madeira branca; leve e de combustão concentrada.
- Um dia essa floresta ainda vai dar muito o que falar - profetizou o jornalista. - É muita riqueza escondida, não? - finalizou, querendo a concordância do comandante.
- Sim - respondeu o comandante.
- Vamos passar por Parintins, Itacoatiara e mais algumas paradas rápidas e então estaremos chegando na capital do estado do Amazonas - disse o comandante ao jornalista, enquanto manobrava o Paes de Carvalho, afastando-o lentamente do pequeno atracadouro. O comandante deixara que o jornalista o acompanhasse na cabina de comando. Gostara de conversar com aquele homem. Aos seus olhos, essa era uma oportunidade de ser o anfitrião perfeito para um jornalista do sul do país, que precisava descobrir as verdades sobre a região amazônica.
- Diga-me, comandante, é muito difícil navegar por esses rios? - perguntou o jornalista. - Com o navio lotado desse jeito; cheio de carga e...
- Às vezes enfrentamos a maior dificuldade de manobra, não é Josino? - respondeu o comandante, enquanto inseria o prático na conversa.
- Nossa! - exclamou Josino de volta. - É cada coisa que a gente enfrenta, doutor - afirmou. Os rios têm vida própria. Às vezes, um rio é manso como uma donzela; outras vezes, parece um diabo brabo e traiçoeiro. É preciso ser bom de vista e de braço para entendê-lo e domá-lo em seus caprichos.
O jornalista, demonstrando interesse, começou então a anotar, num bloco de papel, o que o prático lhe dissera. O que foi suficiente para que o prático, percebendo o interesse do jornalista, soltasse toda sua verve.
- O senhor conhece o fenômeno do rebojo? - perguntou o prático.
- Não conheço.
- O senhor precisa ver só - disse então o prático. - É quando o rio tenta nos submeter e dobrar com vontade - completou. Acontece mais durante o período de baixa das águas.
- As águas do rio se encontram com os seus tributários, onde o leito é mais elevado - interrompeu o comandante, procurando explicar melhor o fenômeno.
- E o que acontece? - indagou o jornalista, querendo saber mais detalhes.
- Naquele pedaço do rio torna-se a boca líquida do diabo; querendo triturar e engolir o barco! - declarou o prático. - Muitos barcos já naufragaram devido a um rebojo violento; não percebido a tempo - explicou, com os olhos arregalados. As águas rodam, borbulham e trepidam. O piloto tem que saber conduzir corretamente a embarcação. Com o leme sem afrouxar um milímetro e o barco passando direto como uma flecha. Isso se for barco grande, porque uma canoa não adianta muita coisa contra o rebojo, não senhor.
- O navio treme da proa à popa - observou o comandante.
- E chega a puxar algumas embarcações para dentro d’água! - completou o prático, efusivo.
- É parecido com a pororoca? - perguntou o jornalista.
- É diferente, mas pode ter o mesmo efeito - argumentou o prático.
- Por acaso, vamos passar perto de um rebojo? – perguntou, ansioso, o jornalista.
- Não; com o rio cheio, eles quase que desaparecem - explicou o comandante.
- Mas quando saímos de Santarém, passamos perto de um - disse Josino.
- Ah! - exclamou o jornalista, decepcionado por não notar nada. E perguntou: - E quanto a esses barrancos constantemente arrastados pelas águas? ... Como é mesmo que são chamados ... Terras? ... Terras...?
- Terras caídas! - exclamou o prático.
- É isso! - exclamou de volta o jornalista.
- Nas beiradas do Solimões, onde o rio empurra as terras, arrasta as casas e desenterra as relvas - poetizou o comandante, ilustrando a conversa.
Josino e o jornalista não puderam deixar de rir. O comandante pigarreou e, envergonhado, procurou logo mudar de assunto.
- O senhor vai ter muito o que escrever para o seu jornal - observou ainda rindo.
- Pois é, doutor - recomeçou Josino -, o nosso trabalho não é fácil, não. - A gente enfrenta de tudo - continuou. Tanto fora quanto no interior do barco.
- A nossa escola é o rio; a nossa casa é o rio; a vida é o rio! – exclamou o comandante.
- E sem esses pequenos navios e paquetes; os portos, os povoados e o que resta dos seringais, morre, doutor - continuou o prático. - Essas margens todas dependem dos nossos navios - finalizou, quase que orgulhoso.
- Quanto tempo leva para se formar um prático? - perguntou o jornalista, procurando aprofundar o assunto.
- Levei quatro anos de formação na Escola Mercante do Pará - respondeu o prático. - Aprendi a entender cada trecho de cada rio como a palma de minha mão.
- É um curso muito rigoroso até receber a carta de prático - completou o comandante.
- Deve ser fascinante - comentou o jornalista.
- E é - afirmou o comandante.
Capítulo VIII
“Ontem conhecemos um jornalista do sul. Seu nome é Euclides Galvez de Sá e veio da capital descobrir e escrever sobre os nossos segredos. Pessoa agradável e curiosa. Desconfio, pelo volume de informação que anda coletando, que está escrevendo um livro. Quer saber mais coisas sobre a navegação de nossos vapores por esses rios. Disse a ele que tudo está mudando muito rápido que um dia esta história toda não vai mais existir. O fim está próximo. Sinto que está próximo. Os seringais já não produzem borracha em abundância, como há quinze anos. Existe muita gente se alimentando insuficientemente na beira desses rios. Não conseguem mais ficar ali, daquele jeito. Os vapores são muitos ainda, mas alguns já não navegam mais as extensões que navegavam antigamente. Quando as pessoas começarem a encontrar outros espaços, as companhias ficarão no prejuízo. As companhias já estão no prejuízo. O doutor Euclides deve mostrar tudo isso lá. É claro que deve. E sobre a saúde? Bom; quando ele souber a quantidade de gente doente que ainda continua morrendo de paludismo por esses interiores! E tome quinino para tentar sanar. O estoque no vapor é sempre pouco para a demanda que há. E ainda tem o beribéri, a varíola e a gripe forte. O vapor às vezes parece um enorme hospital flutuante. É só olhar no rosto dessas pessoas e perceber a face amarga da miséria. Os ricos sofrem de outro mal. Essa região consegue ser bela e triste a seu modo. Pode até ser que, mais tarde, aconteça um milagre e tudo volte a ser como era antes nesses seringais. Talvez o governo consiga alguma virada nesse negócio todo.” O comandante então apertou os olhos procurando afastar um cansaço latente. Há tempos que vinha sentindo esse cansaço inexplicável. “Talvez precisasse consultar um médico quando chegasse a Manaus”, pensou. Deixou o diário de lado e assumiu o posto de comando.
- Pode ir, Josino, agora é comigo mais uma vez - disse, despachando o prático de sua função. Guilherme, que também estava na cabina, continuou a seu lado.
A viagem transcorria sem anormalidades aparentes. Os passageiros pareciam imersos em um tédio inevitável ou em uma desesperança aceitável. Espalhavam-se, quase inertes, em seus cantos e redes, na expectativa da passagem das horas. Conversas jogadas fora e bocejos acompanhavam toda aquela lassidão. E o Paes de Carvalho, parecendo ainda mais lento, continuava a movimentar suas bielas, a queimar suas toras e a expelir seus óleos, arrastando-se por um pacífico trecho de rio perene.
- O que aquele jornalista queria? - perguntou o imediato, quebrando o silêncio.
- Está escrevendo sobre a região - respondeu o comandante. É para o jornal onde trabalha - concluiu.
- Tomara que consiga ver e dizer tudo - observou o imediato.
- É o que eu também desejo - completou o comandante.
- Daqui a algumas horas a mais chegaremos - observou o imediato, aliviado pelas horas terem finalmente passado.
O comandante desviou os olhos para o céu para observar uma formação de aves que deslizava acima, a bombordo do navio. Mais de quarenta indivíduos na disposição típica, que sempre demonstram quando atravessam os ares por sobre aqueles rios. O céu, ao fundo, estava totalmente azul, sem uma única nuvem, mostrando um quadro de sublime beleza. O sol, isolado em um canto do céu, brilhava intensamente. Apenas a fumaça do navio manchava um pouco a paisagem. Fumaça, contudo, que logo ficava para trás e dissolvia-se ao vento. Como os pensamentos daqueles homens. Pensamentos que, a seu tempo, atormentavam seus corações. O comandante pensava no que faria quando chegasse a Manaus. Sabia de antemão que ficaria três dias por lá, antes de reiniciar viagem. No primeiro dia, como sempre fazia, descansaria bastante. Nos outros dias procuraria saldar suas dívidas e rever alguns amigos.
Parintins logo apareceu ao largo. Suas encostas, ocupadas por algumas embarcações estacionadas naquele momento, mostravam-se altaneiras e buliçosas como sempre. O Paes de Carvalho ficaria ali apenas o tempo necessário para carregar as pélas de borracha, litros de castanhas e descarregar os mantimentos solicitados pelos comerciantes locais. Quase nenhum passageiro ficaria em Parintins e pouquíssimos embarcariam para seguir viagem. A ansiedade pela saída para Urucurituba, próximo ponto de parada na escala, estampava-se no rosto daqueles que não viam a hora de navegar novamente, pois sabiam que o tempo no rio era proporcional ao espaço. E aquele espaço era imenso. A Bacia Amazônica tinha uma superfície de mais de seis mil quilômetros quadrados. A maior bacia do mundo. Ali, o infinito era quase que percebido e palpável. Amazonas, Pará, Rondônia, Rio Branco e Acre eram tocados por sua grandeza. O rio Amazonas, o maior rio da face da terra, tinha mais de duzentos afluentes e subafluentes. Uma rede fluvial tão descomunal que só de rios navegáveis, perfazia mais de vinte e três mil quilômetros. Um verdadeiro mar de água doce, que se apresentava a todos os olhos passíveis de vislumbrá-lo. Naquele espaço absurdo, vapores, vaticanos e paquetes estrangeiros navegavam em um tempo elástico e pegajoso, distribuído por diversas escalas nas margens esquerda e direita. E aquela imensa bacia era composta de diversos rios de águas brancas, verdes e negras. Sinuosos e quase intermináveis. Rios de uma paciência infinita.
- Bom dia, comandante!
A voz do jornalista tornou-se repentinamente bem forte, às costas do comandante.
- Oh! Doutor Euclides? Como tem passado? - perguntou o comandante, ao mesmo tempo, surpreso e preocupado com a presença repentina daquele homem.
- Bem - respondeu o jornalista.
- Fico satisfeito de que o senhor tenha gostado de nosso barco - comentou o comandante.
- Tem sido uma ótima viagem e estou sendo muto bem tratado - observou o jornalista. - O serviço de bordo é excelente - completou. Pelo menos para a primeira classe.
O comandante entendera a ironia.
- Bem, é assim que as coisas funcionam - respondeu, meio contrariado.
- Andei conversando com alguns passageiros lá de baixo e...
- E o que o senhor descobriu? - cortou o comandante, antes que o jornalista terminasse de falar.
- É deprimente - reclamou o jornalista.
- Então, deu para o senhor colher bastante material para o seu jornal, não? - observou o comandante de volta.
- Se deu! - exclamou o jornalista, impressionado. - É cada estória que essa gente tem para contar - finalizou, aparentando satisfação.
- Falaram mal do vapor? - quis saber o comandante.
- Reclamaram mais de seus antigos patrões - os donos de seringais e comerciantes - revelou o jornalista, procurando não falar das críticas que escutara sobre o transporte de passageiros.
- Muitos foram tratados quase como escravos nesses seringais - explicou o comandante. - E sobre o vapor? - insistiu.
- Reclamaram de que são colocados junto aos animais; e que quando adoecem, são maltratados e isolados em um camarote localizado à parte - desabafou o jornalista.
- Maltratados, não! - exclamou indignado o comandante. - Mas isolá-los, quando adoecem gravemente, são as ordens da companhia - explicou. Temos que isolar o doente. Essas doenças que grassam nos rios geralmente são contagiosas. E nós temos sempre um médico a bordo para fazer isso. Só nessa viagem é que ele não veio porque houve uma substituição de profissional. Em Manaus teremos um novo médico. Certa ocasião, inclusive, eu tive que isolar um indivíduo que começou a ter uma diarreia horrível. Todos pensamos que talvez fosse cólera. Numa situação dessas, a gente tem que isolar o camarada e deixá-lo lá. Quanto aos animais, é lamentável sim. Mas paciência.
- Acho que não se deveria ter um barco superlotado e com cargas e pessoas arrumadas desse jeito - comentou o jornalista.
O comandante abanou os braços e falou.
- Eu também acho, doutor. Também acho.
A cidade de Urucurituba ficava para trás a abanar as palmas dos Urucuris, como a despedir-se do Paes de Carvalho. Os ventos alísios sopravam forte quando o vapor reiniciou a viagem. As águas do rio, encrespadas, formavam banzeiros que balouçavam suavemente o casco da embarcação. Quando o Paes de Carvalho já estava a uma boa distância do município, os olhos treinados do comandante avistaram, a bombordo, uma pequena canoa deslocando-se célere pela superfície do rio. Percebendo que a rota da canoa se direcionava para o Paes de Carvalho, o comandante desconfiou também que os ocupantes da pequena embarcação estavam enfrentando sérias dificuldades. Preocupado com a agressividade crescente do banzeiro e com a situação daquela canoa no meio do rio, João de Deus começou a diminuir a marcha do Paes de Carvalho. Quando a canoa estava a uns cinquenta metros do vapor, pôde então notar que um homem e uma mulher ocupavam seu interior. Valente e determinado, o homem que manobrava a canoa, remava forte e seguro, procurando assim, com a velocidade constante e uniforme que imprimia, quebrar os banzeiros perigosos, a fim de nivelar a navegação. A poucos metros do vapor, o caboclo estancou a canoa e gritou desesperado.
- Parem o vapor! Parem! Ajudem aqui!
O comandante então reverteu os motores do navio, parando naquele trecho do rio.
- Vá lá, Guilherme, e veja o que está acontecendo! - ordenou o comandante ao imediato.
Uma chuva fina começava a cair quando o comandante e todos os passageiros escutaram o grito, longo e sibilino, da mulher que estava na canoa.
“O que será que está havendo?”, pensou o comandante.
- Comandante! - gritou o homem da canoa. - Me ajude que a minha “mulé” sente dores na barriga.
- Ela está em trabalho de parto, senhor! - exclamou o imediato, observando melhor e já assustado.
- Tragam-nos para o navio e amarrem a canoa - ordenou o comandante. - Vamos ver o que a gente pode fazer - completou. Levem os dois para o meu camarote.
- Acho que a criança “tá” saindo! - gritou o caboclo, assustado.
- Vamos ver isso! - gritou de volta o comandante, procurando acalmar o homem. - É o primeiro filho? - perguntou, enquanto ajudava a puxar os dois caboclos para o convés do navio.
- É - respondeu, lacônico e meio aparvalhado, o caboclo.
- Veja se tem alguma parteira entre os passageiros - ordenou o comandante, dirigindo-se ao seu imediato. - Ou alguém que possa tirar essa criança que quer nascer! - completou.
Já no camarote e deitada no beliche do comandante, a mulher gemia de dor. Seus gritos estavam mais fortes e lancinantes. Alguns curiosos se aproximaram do camarote.
- Josino! Afaste esse pessoal daqui - ordenou o comandante.
- Veja! - gritou um marinheiro que estava ajudando, chamando a atenção de todos.
- Minha nossa! Ela está tendo a criança! - exclamou o comandante. - Rápido, arranje-me uma luva das novas que estão ali no armário! - pediu o comandante a um marinheiro. E traga uma bacia com água limpa e lençóis. E o senhor pegue os braços da sua mulher e segure firme que tirarei essa criança, agora!
Rapidamente, o comandante colocou as luvas e ajeitou os lençóis por baixo das nádegas da mulher, dando início à retirada da criança. O suor escorria pelo rosto daquelas pessoas naquele camarote. Mas, ali, todos também sabiam que não havia outra coisa a se fazer. O processo todo foi lento e em sequência. O comandante começou puxando levemente a cabeça da criança. A natureza cuidava do resto. Quando os ombros do bebê começaram a passar pelo canal dilatado da vagina, tudo se tornou mais fácil. Logo a criança saiu. Com o choque térmico da realidade, seus gritos de vida começaram a ecoar do interior daquele pequeno camarote. O comandante então cortou o cordão umbilical com uma pequena tesoura, depois deu um nó com um barbante e enrolou pacientemente a criança em um cobertor.
- É um menino! - exclamou o comandante, dirigindo-se ao pai. - Daqui a pouco, quando chegar a bacia com água morna, vamos limpá-lo melhor - disse ainda, ao concluir toda a operação e abrir um enorme sorriso enquanto entregava a criança para os braços da mãe.
- Vocês podem ficar no meu camarote - disse o comandante. - Quando chegarmos a Itacoatiara arranjaremos um lugar para vocês, até voltarmos na rota para Urucurituba - explicou. Onde vocês moram?
- Numa casa na beira do rio, lá “pras” bandas da praia - respondeu o caboclo.
- Está certo, então.
- Muito obrigado “sinhô” comandante - agradeceu o caboclo. E perguntou: - Como é mesmo o nome de vossa excelência, comandante?
- João de Deus.
- Ah! É o nome que eu “vô dá pro” menino - disse então o caboclo, sorrindo. - Em homenagem ao “sinhô” - completou.
Os acontecimentos das últimas horas haviam provocado um rebuliço no interior do barco. O nascimento daquela criança tornara-se o comentário geral entre todos que estavam no Paes de Carvalho. Comentavam principalmente a coragem e a tranquilidade do comandante ao auxiliar no nascimento daquela criança. Para o jornalista aquilo era mais um assunto incrível entre tantos outros que se desenrolaram naquele navio. Suas anotações aumentavam e enriqueciam-se a cada instante. Sentado a um canto do salão de recreio, em meio a homens que fumavam e conversavam para passar o tempo, Euclides escrevia exasperadamente. Revisava seus apontamentos e refazia parte do texto. Envolvido com tantos registros de ricas e variadas situações, imaginava que aquelas estórias todas, dos rios, da floresta, e das pessoas inseridas naquele contexto, forneciam material para muito mais que um simples artigo de jornal. Uma voz o retirou de sua concentração.
- Escrevendo o que aconteceu, doutor Euclides?
- Sim - respondeu o jornalista, surpreso pela pergunta. - É tudo tão interessante - justificou. Aquela criança e o inesperado. Fico pensando em como o senhor não teve medo?
- Nessas horas não se deve pensar e sim agir - disse o comandante. - É comum, crianças nascerem nos barcos, durante viagens - explicou. Só que com um médico ou uma parteira auxiliando no trabalho de parto. Comigo, foi a primeira vez. Mas, como eu já tinha visto vários nascimentos, foi fácil.
- Deu tudo certo, não? - perguntou o jornalista.
- Sim, deu - respondeu o comandante, pensativo. - Em meia hora a mais de viagem chegaremos a Itacoatiara - disse ainda, procurando desviar o assunto.
- Já!? - exclamou o jornalista, surpreso com o tempo que passara sem ele perceber.
- Itacoatiara não fica muito longe de Urucurituba - explicou o comandante, enquanto saía de lado. - Com licença - disse, com um leve inclinar da cabeça.
O tempo então passou um pouco mais; e, não sendo grande a distância entre Urucurituba e Itacoatiara, logo o vapor Paes de Carvalho estava encostando suavemente em um dos barrancos daquela cidade. Com as amarras fixas e os pranchões arriados, parte dos passageiros começou então a desembarcar. O comandante João de Deus também resolveu descer em terra para, com o seu imediato, arranjarem uma hospedagem provisória para os pais da criança nascida a bordo. Enquanto andavam por uma rua, o comandante, que há muito tempo não percorria aquele trecho da cidade, não pôde deixar de apreciar novamente os aspectos das casas e dos poucos prédios públicos que compunham o núcleo urbano. Deslocou-se até o prédio do mercadinho municipal e o comandante comprou algumas pencas de banana, orientando o vendedor para despachar a mercadoria em nome do vapor Paes de Carvalho. Ao sair do mercado, João de Deus admirou, sobremaneira, as portas em arcos e a construção do prédio.
- Tens certeza de que o teu primo continua trabalhando aqui no município? - perguntou ao imediato, enquanto subiam por uma rua.
- Claro, comandante - respondeu Guilherme. - Ele, com certeza, continua trabalhando como despachante na firma exportadora Óscar Ramos - afirmou, seguro.
Andaram um pouco mais e logo estavam arrastando os pés por uma pequena ladeira.
- Está vendo ali, comandante! - exclamou o imediato, chamando pela atenção do comandante. - É o prédio da firma aviadora - completou, abrindo um sorriso de satisfação. Vamos lá.
O prédio da exportadora Óscar Ramos projetava-se imponente no final daquela rua. Um enorme casarão de três andares, construído no início do século. Várias portas e janelas configuravam sua expressão arquitetônica definitivamente. Ao entrarem, o imediato foi procurar pelo primo, enquanto o comandante ficou observando os inúmeros produtos arrumados no salão principal. Havia uma variedade de itens e mercadorias naquele amplo espaço interno da casa: cacau, castanha, borracha e secos e molhados em geral. Existia também, encostado a um canto, um enorme estoque de fazendas, algumas ferragens, louças, drogas diversas e alguns barris de madeira envolvidos por lâminas de ferro.
- Aqui está o meu primo, comandante.
- Oh! Desculpem; estava distraído, olhando as mercadorias - disse o comandante, ao virar-se. - Prazer; João - apresentou-se, educadamente.
- Como vai? - cumprimentou o homem. - Alberto Muller ao seu dispor - completou, colocando as mãos para trás das costas, pronto para servi-lo.
- Expliquei tudo ao Alberto, comandante - disse Guilherme. - E foi mais fácil do que eu esperava - completou em observação.
Alberto balançou a cabeça, concordando.
- Mas sim!? - instigou o comandante, curioso e querendo ampliar a conversação.
- O casal e a criança podem ficar na casa do Alberto até o final do mês; depois embarcam num vapor de volta a Óbidos - explicou então Guilherme.
- Nós não temos filhos e a casa é grande - esclareceu de volta Alberto. - Será um prazer tê-los conosco – completou em seguida, sorrindo.
- Ah! Então, irei já tratar da remoção do casal e da criança - disse o comandante.
- É claro! - exclamou Alberto, concordando com a pressa do comandante. - A minha casa fica ali naquela esquina - explicou, enquanto apontava na direção de onde morava.
“Tudo resolvido a contento; graças ao bom Deus. Pois esta viagem estava apresentando muitos problemas durante o percurso. Agora é estar em Manaus e ter um pouco de paz e descanso. Estou ansioso por chegar. Preciso rever alguns amigos antes de embarcar de volta. Mas são duzentos e quatro quilômetros até chegar lá. Tomara que nada mais aconteça e o tempo escoe rápido. O Paes está cheio de mercadoria pesada e isso dificulta a navegação. Ainda bem que os passageiros se acalmaram um pouco. Duzentos passageiros cansados e alguns a um passo de um descontrole emocional. Conheci o primo do Guilherme, que trabalha em Itacoatiara. É muito simpático e prestativo. Ele e a esposa aceitaram a hospedagem do casal e do menino nascido a bordo. Tenho certeza de que ficarão bem. Melhor do que em um hospital. Ainda bem! Só espero que aquela criança cresça forte e sadia e que Deus a proteja. O pai disse que dará o meu nome para a criança. No resto, o tempo está bom e tudo está sob controle. A manhã está amena e o céu está um azul só. Quando deixamos o porto de Itacoatiara, uma gaivota pousou perto da cabina e ficou me olhando. Parecia querer me dizer alguma coisa. Acredito que daqui para frente o tempo vá continuar desse jeito. Ainda pararemos em algumas localidades. Mas é só. Amanhã, dia 17, estaremos em Manaus. Na santa paz do senhor. Três dias de descanso, antes de um novo recomeço.”
- Bom dia, comandante!
- Bom dia, “seu” Josino! - cumprimentou o jornalista, surpreendendo os dois homens. - Oh! Doutor Euclides, como vai?
- É um diário, aposto, o que o senhor está escrevendo? - perguntou o jornalista, apontando para o livro de capa preta no qual o comandante escrevia.
Oh! É sim - respondeu o comandante, sorrindo. - Faço sempre isso para pôr os pensamentos em ordem - explicou.
- É ótimo escrever - disse o jornalista. E continuou: - Eu mesmo, poucos minutos atrás, também estava escrevendo.
- Venha cá; pode entrar na cabina - disse então o comandante, para a satisfação do jornalista.
- Com a sua permissão - aquiesceu o jornalista, enquanto entrava.
- E o senhor escrevia sobre o quê, posso saber? - perguntou o comandante.
- É sobre isso que eu queria falar com o senhor - disse o jornalista. - Eu trouxe aqui alguma coisa que escrevi para os senhores verem - explicou. Posso ler?
- Claro - concordou o comandante.
- É curto; apenas a introdução para o assunto - explicou o jornalista. - Vou ler para os senhores - continuou, enquanto tirava um pequeno papel do bolso do paletó ... “A bacia Amazônica é a mais extensa do mundo. Com trechos de rios que se perdem no horizonte. Aqui os olhos dos homens pousam suas esperanças, tristezas e sonhos. É um mundo à parte. De gente que acredita na aventura do viver. Em enxugar o suor exaustivo e a se proteger da umidade excessiva, para poder ir sempre em frente. Esse heroísmo, de homens e mulheres que aqui vivem e trabalham, é sempre recorrente. E é essa gente sofrida e esses heróis incansáveis que, geralmente, compõem a população de passageiros e tripulantes dos navios fluviais. Tudo, nessa região esquecida, começa e termina nos rios. E como não poderia deixar de ser, os vapores é que transportam os sonhos de todos os que querem domar esse mundo verde.”
- Está bom assim? - perguntou o jornalista, parando de ler.
- Não vejo nada de errado - comentou o comandante.
- Mais adiante farei um apanhado de situações e episódios que servirão como ligação para as descrições da região - explicou ainda o jornalista.
- Tenho certeza de que será um belo trabalho e que irá despertar os políticos da capital sobre o que vem acontecendo, ou pode acontecer, na Amazônia - disse o comandante.
- Assim espero - concordou o jornalista, sorrindo.
Capítulo IX
O tempo parecia escoar morno e insosso no interior do Paes de Carvalho. Os acontecimentos excepcionais ocorridos no barco haviam sido esquecidos, face à expectativa da chegada a Manaus, prevista para mais alguns minutos. Com os corações batendo no compasso da espera ansiosa, em sair logo daquele vapor e colocar os pés na cidade, o cansaço e a languidez atingiam a todos. Sonhos e expectativas flutuavam naquelas cabeças como as canaranas ao redor do navio. Para alguns, Manaus seria um porto efetivo e seguro, para outros, apenas uma passagem a mais em uma vida errante. Encerrados na cabina e em silêncio mútuo, o comandante João de Deus, o prático Josino e o imediato Guilherme estavam com os olhos fixos no horizonte. A expectativa suprema de todos estava em identificar logo o farol do prédio da guarda. Os dias de viagem de Belém até Manaus haviam sido exaustivos e os dois dias e meio de descanso, antes do retorno para a escala de volta do vapor, apareciam quase como uma dádiva dos céus.
A tarde baixava triste e um vento soprava leve quando o Paes de Carvalho entrou na baía do Rio Negro. Manaus, majestosa e bela, começou então a se fazer notar. O comandante retirou o chapéu e deixou que o vento tépido alisasse seu amplo rosto. Sentia-se aliviado por finalmente estar chegando. Sabia que os dias de descanso seriam, não só necessários, como por pouco tempo. Aproximando-se do porto, um forte odor de óleo e fumaça começou a inundar as narinas de todos. A baía do Rio Negro estava repleta com uma significativa quantidade de embarcações de vários tamanhos. Diversos “gaiola”, dois navios do Lóide brasileiro e um paquete da Lamport & Holt Line espalhavam-se pelas águas em frente ao porto de Manaus. Limitando-se entre a praia de São Vicente e o Mercado Municipal, com pátio de carga e descarga e diversos armazéns, o porto mostrava-se por toda a extensão de uma enorme muralha. A parte portuária flutuante da Manaus Harbour compunha-se de um cais no qual, na sua parte frontal, estavam atracados, naquele momento, alguns navios de cabotagem. No local chamado Trapiche das Torres, onde o rio era mais profundo, estava estacionado um enorme paquete de bandeira italiana. Os “gaiola”, que como o Paes de Carvalho, chegavam naquela tarde, fundeavam a uns duzentos metros longe do cais, na espera da visita dos funcionários da Alfândega e da Saúde, que fariam as fiscalizações de praxe.
Após o término da inspeção-geral, o comandante pôde finalmente encostar o casco do Paes de Carvalho, antes que anoitecesse, num espaço vago do cais. Impacientes, em movimentos apressados e suspiros de alívio pela chegada, os passageiros começaram a pegar suas bagagens e apetrechos. João de Deus, postado na varanda do “gaiola”, assistia a tudo com uma leve preocupação, face a uma quase balbúrdia que a chegada do barco provocara nos passageiros. Entre abraços de amizades que se fizeram naqueles dias de viagem e gritos e saudações de parentes que recepcionavam os seus, ele também resolveu descer. Enquanto passava em meio aos passageiros, alguns felicitando-o pela viagem e decisões que tomara, o comandante foi então se afastando lentamente de seu vapor. Com aquela farda branca de piloto graduado e sua altura acima da média, parecia-se com um deus dos rios amazônicos, que finalmente tivesse cumprido sua missão em conduzir os humanos por aquelas águas exacerbadas e lonjuras enervantes. Quando passou perto de um dos armazéns, escutou a cantilena já conhecida dos carregadores do porto, a gritarem chamando a atenção dos passageiros para o transporte de suas bagagens. Gritos que soavam como uma música aos seus ouvidos. Viu então as cargas deslizando pelo ancoradouro, transportadas, sob as vistas do imediato e de um conferente, por estivadores esforçados e disciplinados. Entre a multidão que saía pelo portão principal do Rodway, o comandante percebeu haver todos os tipos de olhos voltando-se para a luminosa cidade, a qual se descortinava lá fora. Eram olhares variados. De um cansaço extremo; de esperanças últimas e de deslumbramentos autênticos. O jornalista Euclides era um desses, que olhava deslumbrado pela constatação, pura e imediata, da existência daquela cidade moderna no meio de uma selva inóspita. Sentia-se assim pelo que ficara sabendo ao longo da viagem. E, ao desembarcar, ficara ainda mais deslumbrado, ao ver aquele porto flutuante feito todo em madeira e sustentado por enormes tambores de ferro. Notou sobremaneira o aspecto do prédio amarelado da Alfândega. Seu talhe arquitetônico e disposição espacial. E quando pôs os pés naquele trecho da rua que passava em frente ao portão do porto, sua primeira visão foi a de um bonde elétrico vindo a toda velocidade em sua direção.
Ao atravessar a rua transversalmente, o jornalista alcançou uma praça onde logo notou a existência de um enorme chafariz. Aproximando-se um pouco mais daquela peça, ficou impressionado por sua beleza. Viu que as esculturas em bronze, que compunham aquele monumento, eram de uma suavidade e beleza como talvez só existisse na Europa. E era de lá, efetivamente, como pôde notar depois em uma inscrição, de onde havia vindo aquele chafariz: Sun Foundry, Glasgow, leu. A bacia, com relevo de cobras e vegetação, era uma composição hexagonal enfeitada em seus vértices por seis esculturas de meninos. Três dos meninos sentados, a segurar uma espada, e três em pé, segurando cântaros. Na frente, Euclides percebeu a graciosa escultura de um cisne. No meio da bacia hexagonal do chafariz, elevava-se a base principal. Vários meninos carregando pequenas bacias estavam ali. Embaixo desses, esculturas de serpentes apareciam por entre uma vegetação distribuída entre duas colunatas. Rostos dourados do deus Netuno, o deus dos mares, projetavam-se ali perto. Ainda na base, aparecia um grupo de doze anjinhos dançando suas elegias. No meio desse conjunto estava a deusa Vênus, equilibrando graciosamente um vaso na cabeça. Quatro tocadores de corneta alegravam um ato musical de homenagens aos deuses presentes. Ele ficou maravilhado com o que via. Saindo das imediações da praça e indo na direção do hotel que lhe haviam recomendado, Euclides reparou nas inúmeras e bucólicas árvores espalhadas por aquele trecho agradável da cidade de Manaus. Apesar da situação econômica de penúria, devido à crise dos preços da borracha, a cidade mostrava ainda toda uma pujança arquitetural. Casas comerciais, alguns poucos armazéns, alfaiatarias, bares e restaurantes, ruas largas de granito e pedra, praças e jardins bem cuidados, revelavam aos olhos dos visitantes a visão de uma cidade bem especial. É claro que ele soubera que tudo ali já não era o mesmo de alguns anos atrás. Disputas políticas, ainda não de todo assentadas, denúncias de administração deficiente e casas comerciais, desaparecidas em falências espetaculares, enquadravam o panorama de vida na cidade. Mas, a história de tudo o que acontecera e continuava a acontecer estava estampada, de certa forma, naquelas ruas de pedras. E é fácil também de se perceber através de suas edificações expressivas. O jornalista resolveu então indagar de alguns transeuntes os nomes das ruas mais próximas. Descortinou a igreja de Nossa Senhora da Conceição à sua frente e alcançou finalmente o hotel, localizado na esquina da rua Municipal com a rua Marechal Deodoro. Euclides entrou no hotel, acreditando que, depois de uma noite de descanso, acordaria pronto para descobrir muitas outras coisas sobre aquela bela e distante cidade, que devia toda sua pujança e história recente a um látex, o qual já não corria mais tão abundantemente.
Capítulo X
O comandante João de Deus sempre ficava hospedado, durante esses pequenos intervalos de descanso, na residência de outro comandante amigo seu. Situada na avenida Joaquim Nabuco, a casa do comandante Clóvis era ampla; de dois andares, com vários cômodos e um extenso quintal com árvores frutíferas. Naquele quintal, destacava-se um enorme pé de abricó e um tanque feito de cimento, no qual melancólicas tartarugas circulavam à espera da morte certa. Havia também ali uma pequena horta e uma fonte decorada, fixada em um dos muros que ladeavam o espaço. Na casa, além do dono, moravam seus oito filhos; um irmão do comandante oriundo de um seringal falido e alguns poucos criados. A esposa do comandante falecera há alguns anos de complicações renais. Com os filhos já crescidos e esse irmão que tomava conta dos empregados e da casa, Clóvis sempre convidava outros comandantes para lhe fazerem companhia. Sujeito simpático, de compleição atarracada e uma barba bem aparada, seus olhos eram de uma vivacidade sem par. Conhecera o comandante João de Deus por intermédio de um amigo em comum. Desde o começo, suas relações de profissionais do mesmo ramo fizeram surgir uma amizade, que aumentava cada vez que se encontravam.
Naquela noite, logo que chegou, o comandante João de Deus foi agraciado com um jantar de boas-vindas. O prato, como não poderia deixar de ser, era um ensopado de tartaruga.
- Já soubestes que estão querendo rever os contratos de subvenção da Companhia? - comentou João de Deus, procurando iniciar uma conversa que envolvesse a profissão de ambos.
- Mas se cortarem os subsídios, aí será o caos total - observou o comandante Clóvis. - Os custos da cabotagem aumentaram muito em relação ao volume transportado - completou, cofiando a barba com ar de preocupação. Talvez seja isso que esteja fazendo o Governo Federal repensar em novos termos.
- É muita gente para lá e para cá e a borracha escasseando cada vez mais - disse João de Deus. - Fiquei sabendo também que a Amazon River teve um déficit operacional, ano passado, de mais de dois mil contos de réis - observou ainda, com o semblante demonstrando extrema ansiedade pelo rumo tomado nesses acontecimentos.
- E os armadores particulares estão também operando no vermelho - alertou o comandante Clóvis. - E para eles é pior! - exclamou logo em seguida. Todos estão com os dias contados, comandante - profetizou amargurado. Olhe! O vinho chegou.
- O que me preocupa também são os seringalistas e seringueiros que estão desaparecendo, a olhos vistos, por falta de renda - disse João de Deus, enquanto bebia um copo de vinho do Porto.
- O que está acontecendo é triste e eles ainda vão decretar a falência de toda essa região - disse Clóvis.
- Senhor Clóvis! O ensopado de tartaruga já está na mesa - cortou um dos empregados, anunciando o jantar.
- Se acontecer uma falência total, espero pelo menos ser indenizado corretamente - continuou João de Deus, enquanto se levantava. - Às vezes penso em abandonar essa profissão e abrir um comércio de roupas ou alimentos, o que continua dando alguma coisa - finalizou o comandante, abanando os braços.
- Eles podem muito bem diminuir ainda mais a tripulação dos barcos para cortar os custos - continuou Clóvis.
- Seria uma saída terrível! - disse o comandante João de Deus.
- Ou então vão diminuir o número de linhas de navegação - observou Clóvis de volta.
- E os portos de abastecimento de lenhas também vão seguir a crise - alertou o comandante João de Deus. - Vai ser o caos! O caos! - concluiu.
- Pegue mais um pouco! - disse Clóvis, oferecendo o ensopado de tartaruga.
- Não, já estou satisfeito - João de Deus agradeceu. E perguntou: - E você, saindo à meia-noite, como sempre?
- É! A bendita linha de Manaus a Cruzeiro do Sul - resmungou o comandante Clóvis. - E como está a família, comandante? - perguntou logo em seguida, procurando desviar o assunto da conversa.
- Vai bem, graças a Deus - respondeu João de Deus, demonstrando um pouco de preocupação no semblante.
- Deves estar cheio de saudade, não? - observou Clóvis.
- Não é nada fácil, tu sabes - comentou João de Deus.
- Essas distâncias estão sempre a nos afastar do convívio familiar - resmungou Clóvis. - Quando minha esposa morreu, eu estava há milhas de distância daqui - completou pesaroso.
Os dois comandantes então se entreolharam, abaixaram as cabeças e caíram num mutismo envolto em cumplicidade, resignação e quase desespero. Gostavam do que faziam, mas tinham medo do que estava acontecendo ao redor; ou do que ainda pudesse acontecer. Antes, transportavam riquezas, alegrias e farturas. De uns tempos para cá, o que viam era só pobreza, tristeza e escassez. Experientes como eram, pressentiam o tempo passando e o espaço contraindo-se. Novidades eram então mostradas nos horizontes de suas vidas. Novidades que eles também sabiam não poderem manobrar. Havia um cheiro de abandono no ar. Uma elasticidade perdida. Momento de contração. Prenúncio, talvez, de um novo tempo. Até o momento, seus braços, seus olhos e seus peitos ainda eram necessários. “Mas, até quando tudo isso iria durar?”, perguntavam-se e não encontravam resposta.
No dia seguinte, com a ordem de ativar o fogo da fornalha, a tripulação do Paes de Carvalho deu início aos preparativos da partida. Passageiros elegantemente vestidos e uma leva de retirantes fluviais se aglomeravam no cais do porto, à espera do sinal para o embarque. Com todos sabendo da extrema pontualidade dos “gaiola”, tudo parecia controlado e dentro do tempo estipulado para a saída. O comandante João de Deus, devidamente descansado, observava do alto da cabina de comando o transporte das últimas cargas e os movimentos necessários que a sua tripulação tinha que fazer. Como sempre, sua escala seguiria o trajeto da linha do Juruá, passando por lugarejos inexpressivos até chegar ao porto principal. Além da carga de sempre, naquela noite, o Paes de Carvalho estava levando mais de duzentas pessoas.
Passado um quarto de hora e praticamente transportada toda a carga - o que já vinha acontecendo desde o dia anterior - o comandante pediu ao seu imediato que ordenasse a subida dos passageiros, enquanto ele iria vistoriar, com um funcionário da Capitania dos Portos, o acondicionamento final dos volumes. O que o preocupava, além da quantidade e peso da carga, que talvez excedesse mais de cem toneladas, era o volume, bastante significativo, de inflamáveis e explosivos que, naquela noite, o vapor estava carregando. Eram mais de cem caixas de gasolina, cerca de trezentas caixas de querosene e sessenta caixas de pólvora que seriam levadas para a cidade de Seabra e para um lugarejo do alto Juruá. O comandante João de Deus sabia do risco que corria transportando esses volumes, com aquela quantidade de passageiros circulando pelos conveses. Acidentes já haviam acontecido em outros barcos e ele preocupava-se sobremaneira com isso. Comentou o fato com o funcionário da Capitania e procurou logo se afastar daquele local do vapor, onde os combustíveis estavam acondicionados. Verificou as amarras mais uma vez e acreditou que nada de mal aconteceria.
- Estão com as amarras fortemente enlaçadas - comentou, dirigindo-se ao funcionário.
Já com todos os passageiros acomodados em seus camarotes e lugares e a fornalha em seu ponto de pressão adequado, à meia-noite o comandante deu o sinal para os maquinistas acionarem os motores. Neste exato momento, passageiros começaram a afluir para a lateral do barco, ansiosos por uma despedida ou aceno na direção de familiares, ou conhecidos. Lentamente, o Paes de Carvalho distanciou-se do porto, iluminando, com suas luzes e holofotes, trechos daquele rio coberto pelo clima de uma madrugada fria e que se prenunciava insidiosa. O comandante respirou fundo e desviou o olhar para uma folhinha afixada ali perto. Marcava o dia 19 de março de 1926. “Como será que está a pequena Denise?”, pensou o comandante, enquanto mudava o dia marcado pela folhinha.
À medida que a embarcação tomava o rumo do rio, suas preocupações desapareciam, dissolvidas pela consciência da impotência de qualquer modificação contrária ao que se apresentava aos seus olhos. Agora, o tempo e o espaço passavam a ser, novamente, o tempo e o espaço do rio. A escuridão lá fora, conjugada com o barulho das máquinas, parecia entorpecê-lo no comando; levando-o quase a um alienamento dos sentidos. Aqueles primeiros minutos, após a saída do vapor, eram de extremo relaxamento. Tudo parecia quieto e em perfeita ordem. Nada poderia perturbá-lo. Todas as suas viagens começavam assim, serenamente.
A madrugada passou rápida e já o sol estava despontando no horizonte. A bordo do Paes de Carvalho ainda reinava um silêncio, quando um grupo de marujos apareceu com seus baldes, escovas e sabão e foi imediatamente ocupando o convés superior. Meio indolentes, começavam mais uma vez a rotina de limpeza dos tombadilhos. E, como não poderia deixar de ser, o barulho dos escovões começou a despertar os passageiros. João de Deus, rendido pelo prático Josino, desceu até seu camarote para tomar o café da manhã e descansar um pouco. Planejava dormir até a hora da chamada para o almoço. Apesar da necessidade de deixar, ocasionalmente, o vapor nas mãos de um praticante, no fundo, o comandante não gostava de fazer aquilo. Sempre sentia um pouco de insegurança ao ter de abandonar o timão. Gostava de controlar toda e qualquer situação. Fosse qual fosse. Ainda mais em relação ao seu querido gaiola. Embora ultimamente estivesse um pouco decepcionado, com os dissabores que às vezes tinha que enfrentar. Navegar por aqueles rios, além do aspecto profissional, também comportava para o comandante toda uma questão de orgulho pessoal. Não era homem de se entregar facilmente a qualquer dúvida ou cansaço. Vinha sentindo-se indisposto, é verdade, mas a vontade de ir em frente com o trabalho sempre seria maior e suplantaria qualquer dúvida que, por acaso, pudesse brotar em sua cabeça. Os amigos que fizera ao longo dos rios, em Manaus e em Belém, selavam, pela respeitabilidade que lhe devotavam, um compromisso constante. Ainda mais por acreditarem ser ele um dos melhores comandantes daquelas paragens. E ele correspondia a isso, com sua honestidade e credibilidade. Afinal, tinha anos de navegação nas costas.
Quando acordou, o comandante vestiu rapidamente a sua farda e saiu para almoçar. Antes de se dirigir ao local do barco, onde a tripulação se reunia, João de Deus resolveu cumprimentar alguns passageiros da primeira classe que se aboletavam pelo convés e salas. Ao abrir a porta de seu camarote, seus ouvidos receberam o impacto de um burburinho de vozes. Àquela hora, o ambiente no interior do navio já era outro. Cavalheiros e senhoras compunham grupos de conversas que se reuniam, tanto a bombordo como ao boreste do vapor. A sala de fumantes estava totalmente ocupada por homens que puxavam, exasperadamente, o fumo de seus cachimbos e charutos. O salão onde era servida a refeição dos passageiros da primeira classe, e que ficava localizado quase à popa, estava lotado de passageiros que almoçavam as iguarias feitas a bordo.
- E então, Inácio, o que o senhor fez para o almoço? - perguntou o comandante, ao se aproximar do despenseiro.
Homem sempre alegre e jovial, Inácio respondeu.
- Peixe ao molho de verduras e suco de açaí; tudo do bom e feito aqui!
- Sempre rimando, não é, senhor Inácio? - disse o comandante. - És um poeta! - completou.
João de Deus percebeu então que o imediato Guilherme encontrava-se conversando com dois homens, de aparência distinta e escorreita.
- Bom dia, comandante! - disse o imediato, acenando-lhe.
O comandante aproximou-se.
- Estes dois senhores aqui desejam conhecê-lo - continuou o imediato.
O comandante sorriu e estendeu a mão.
- Prazer, João de Deus - disse.
- Prazer, José de Magalhães Cordeiro.
- Capitão José Ribeiro da Silva - disse o outro.
- E cearenses, comandante! - completou Guilherme.
- Estão indo para Belém; acertei? - perguntou o comandante, rindo.
- Acertou! - exclamou o que se chamava José de Magalhães Cordeiro.
Aparentando ter uns quarenta anos, José era baixinho, entroncado e com o cabelo virado para trás. A testa larga era destacada por duas sobrancelhas bem traçadas. O nariz reto e a boca com lábios finos. Enquanto falava, numa voz sonora e tonitruante, percebia-se que seu aspecto geral demonstrava constante segurança e firmeza.
- A passeio? - indagou o comandante, logo em seguida.
- Estou indo para Belém a tratamento de saúde - continuou o senhor Magalhães Cordeiro, explicando a real situação. - Fui operado recentemente, mas não ando me sentindo muito bem - explicou. Pedi alguns dias de licença do trabalho e...
- Lembro-me bem de já ter visto o senhor em meu navio - cortou o comandante.
- É possível, pois trabalho como caixeiro-viajante na casa J.G. Araújo - respondeu o homem.
- E o senhor? - perguntou o comandante, dirigindo-se ao outro homem.
- O senhor José Ribeiro é também político em Coari, comandante! - apressou-se em dizer Guilherme.
- Ah, é!? - exclamou o comandante, virando-se na direção do imediato.
O homem apenas sorriu, cofiando o seu imenso bigode.
- Bem, os senhores são meus convidados - disse o comandante, procurando encerrar as apresentações para ir direto ao almoço. - Vamos saborear os quitutes do nosso cozinheiro de bordo - completou, abrindo um largo sorriso. A viagem do vapor Paes de Carvalho transcorria segura e tranquila na manhã daquele dia. O rio, os passageiros e a tripulação pareciam comungar de um acordo silencioso, em prol da placidez e bem-aventurança no mundo. As águas naquele trecho eram enormes espelhos líquidos, cortados por uma quilha insidiosa e que deixava um rastro de ondas melancólicas. O barulho das máquinas, no seu “trac e trac” constante, abafava o falar lento e arrastado de todos que, àquela hora, acordavam. O comandante João de Deus aproveitava o momento para retomar os seus escritos e apontamentos de viagem ... “Manhã do dia 21 de março de 1926. Hoje amanheceu calmo e maravilhosamente belo. Acho que é aqui, e durante esses instantes, que Deus sempre refugia seus pensamentos. No meio dessa vastidão de águas e árvores, a cada dia que passa me convenço de que o homem é mesmo pequeno. Em relação ao clima, posso quase afirmar que a estiagem, que apareceu, ainda continuará por alguns dias. Nos dias anteriores, a vida a bordo foi excelente. Acredito até que essa leva de passageiros é mais tranquila. Ontem conversei com alguns comerciantes e políticos. Entre outras coisas, conversamos sobre os nordestinos que perderam tudo e estão voltando para Belém, e, de lá, pretendem voltar para as suas terras. São os mais desesperados dentre os que aqui chegaram, atraídos pela febre do látex. Pelo menos é o que eu penso. Antes de ontem, eu tive que largar dois reboques inconvenientes que, atrelados ao vapor, estavam retardando a viagem. Eram dois pescadores portugueses que já vinham atrapalhando, em quatro horas, a navegação do Paes de Carvalho. Em determinado momento, solicitei que retirassem os reboques. O praticante Mário transmitiu a minha ordem. Um dos pescadores obedeceu logo e desamarrou a canoa do navio. O outro ainda quis continuar com o reboque e eu tive então que tomar uma atitude mais firme e mandar desamarrar a canoa. Outra coisa que aconteceu foi que a santa que eu sempre trazia comigo na cabina de comando, caiu inexplicavelmente de seu lugar e quebrou-se ao meio. No mais, tudo corre bem e espero que continue assim”. Assim que terminou de escrever essa última frase, o comandante passou a escutar, vindo da terceira classe, o som melancólico de uma viola. A música, que talvez fosse produzida pelas mãos de um nordestino pesaroso, era triste e chorosa.
As horas passaram então lentas, naquele dia. No compasso das esperas demoradas das longas distâncias a vencer. Mas logo que a tarde caiu firme e a noite desceu certa, o tempo também mudou. O calor exasperante da tarde cedendo espaço para uma friagem de gelar o sangue. Com o céu começando a ficar da cor de um branco leitoso, a prenunciar uma chuva, talvez. Após o jantar, os passageiros da primeira classe sumiram como num passe de mágica. Todos se recolheram mais cedo, por causa daquele frio inesperado. Na terceira classe, habitualmente tão barulhenta, baixou um silêncio. Encolhidos como podiam, famílias se acomodavam em suas redes ou em espaços vagos no chão do barco. Depois de um tempo de navegação, o comandante olhou o seu relógio de algibeira e viu que os ponteiros marcavam três horas e meia. “Daqui a quinze minutos estarei atingindo a ponta da ilha da Botija”, pensou. “Deixo o timão e vou deitar-me ... Durmo um pouco ...?...” Naquele momento, ele sabia que o Paes de Carvalho costeava a margem esquerda do Solimões, navegando o Camará. Foi quando também começou a soprar um vento forte. Naquele momento, o comandante também percebeu começar a defrontar-se com a ilha de Ajurá, localizada na foz do Paraná de nome Mamiá. “Tomara que o descarregamento no porto do Trocary seja rápido”, pensou o comandante enquanto manobrava o vapor para o lado direito da ponta da ilha da Botija. Eram três horas e trinta e cinco minutos daquela madrugada. Todos pareciam estar dormindo profundamente, quando o comandante começou a escutar vozes. A princípio, debilmente, depois crescendo de intensidade e tornando-se finalmente num conjunto forte e preocupante. Uma mistura de gritos sem nexo. “Deve ser apenas mais uma confusão entre passageiros irrequietos”, pensou o comandante. Foi quando, em meio ao vozerio, ele ouviu claramente as palavras “fogo” e “incêndio” serem clamadas. Por alguns segundos, o comandante João de Deus não quis assimilar o que escutava.
- Josino! Josino!
- Sim! Meu comandante! - exclamou o prático, com os olhos arregalados pelo susto que tomara, pois, dormia placidamente, encostado a um canto.
- Vá ver o que está acontecendo lá embaixo, imediatamente! - rosnou o comandante. O coração batendo acelerado e com a preocupação do prenúncio de uma tragédia.
Josino não perdeu tempo e correu direto para onde estava acontecendo o barulho. Chegando lá, não pôde acreditar no que viu. Por um momento, seus olhos brilharam de surpresa e pavor. Em um canto da popa, um incêndio subia até o teto do convés superior. Labaredas preocupantes, seguidas de pequenas explosões, já atingiam aquele trecho do navio. Alguns passageiros já haviam acordado e, no tumulto que começava a se formar, procuravam subir, apavorados, para o convés da primeira classe. Mulheres, ao perceberem o prático se aproximando, agarraram-no imediatamente, gritando por um socorro que ele já não poderia lhes dar. Uma fumaça espessa e asfixiante começava a se espalhar naquele trecho do barco.
- Leonardo! - gritou Josino, ao perceber o terceiro maquinista tentando debelar o fogo. - Que foi que houve, rapaz? - perguntou.
- Parece que foi um colchão que começou tudo - respondeu Leonardo. - Acho que um passageiro fumava aqui perto! - explicou o maquinista, com o suor e o terror estampado em seu rosto.
- Volte para a casa das máquinas - ordenou Josino. - Pois o comandante pode emitir alguma ordem - fez observar. E vê se manda alguém trazer o “burro” para apagar esse incêndio!
- Acho que não adianta mais não - alertou o maquinista. - Este incêndio já tomou proporções imensas - concluiu pesaroso. Nem um dilúvio apaga mais isso.
Josino olhou então para o incêndio em volta e percebeu que o maquinista tinha razão.
- E o fogo ainda pode atingir a casa das máquinas! - alertou o maquinista. - Mas vou ver o que posso fazer - disse ainda, saindo de lado.
Josino foi então até a cabina de comando. Lá, lívido e quase abobalhado, começou a alardear fato na direção do comandante.
- Um incêndio, comandante! ... Um incêndio na popa! ... E vai atingir os inflamáveis! - gritou o prático. - Tudo está perdido - afirmou impotente. Temos que cair na água. Todo mundo!
O comandante não queria acreditar no que o imediato lhe falara. Mas, espantado pelo imprevisto, acionou a sirene do navio, soltando seguidamente dois apitos breves e contínuos, procurando sinalizar o perigo que acontecia a bordo. Enquanto isso, o fogo alastrava-se continuamente. Para aumentar, ainda mais, a gritaria e o desespero dos passageiros. Aglomerados no primeiro convés, adultos e crianças começavam a atravessar os estreitos corredores da primeira classe. Todos procurando fugir do fogo, indo na direção da proa. O horror estampado em cada rosto. Pessoas, ainda presas na terceira classe, começaram a pular no rio, procurando escapar do inferno. Desses, muitos, que não sabiam nadar, morriam debatendo-se sob um vento forte que agitava ainda mais as águas, habitualmente tenebrosas do Solimões. O cenário geral era cruel para todos. Passageiros que atingiram a proa gritavam pelo comandante João de Deus e imploravam, o quanto podiam, para ele levar o “vapor” até um barranco. Mas os comandos do barco não respondiam mais, pois os maquinistas haviam abandonado seus postos. Nos espaços do “gaiola”, ainda não atingidos pelas chamas, algumas senhoras ajoelhavam-se agarradas a seus filhos pequenos e rezavam com as mãos postas para o céu. A aflição provocada pela impotência de todos era geral. No rio, os que pularam e conseguiram nadar, agarravam-se em qualquer dos inúmeros objetos, entre malas, remos e pedaços de tábuas que já flutuavam circundando o navio. Mas, alguns desses, mesmo nas águas, ainda eram atingidos pelas explosões seguidas, que aconteciam a intervalos determinados. Uma coluna de fumaça começava a se elevar a uma altura considerável quando, de repente, uma enorme explosão atingiu a caldeira do Paes de Carvalho. O vapor rodopiou violentamente e começou a soçobrar, como se uma força descomunal o puxasse para as profundezas barrentas daquele rio desesperado.
- As labaredas estão se aproximando dos inflamáveis, comandante! - gritou então o prático.
- Meu Deus! - exclamou João de Deus, aparvalhado.
- O Milton está tentando apagar - completou o prático.
Um incêndio num vapor era algo impensável e de consequências imprevisíveis. Ainda mais com o barco carregando todo aquele material inflamável. “Se esse fogo atingir os inflamáveis e o gerador do barco, será o fim”, pensou. “Parar as máquinas”, foi seu outro pensamento logo em seguida. “Eles vão ter que usar o burro para apagar o fogo ... Parar, para não atiçar ainda ...?... E então ... Não ... Mas? ...”
O comandante João de Deus não acreditava no que estava acontecendo em seu barco.
- Comandante! Socorro! - começaram a gritar passageiros presos na parte de baixo do vapor.
O comandante escutou aqueles gritos desesperados e não acreditou que saíssem do interior de seu barco. “O que fazer?” Tentou manobrar o vapor para se aproximar um pouco mais da terra. “Mas é preciso parar as máquinas antes que ...” Seus pensamentos levavam-no na direção da impotência total. Mas, por breves momentos, voltaram-se para a possibilidade do fogo ainda ser debelado. “Tem que ser ... Não adiantará ... A distância é enorme ... Talvez ...?... Aqui neste ponto a correnteza é muito forte ... Uma curva ... Levará ... É necessário pegar o embalo correto ... Meu Deus ... O leme tem que continuar funcionando ... e...”
- Temos que alcançar a terra, comandante - disse uma voz, cortando seus pensamentos.
Por uns míseros segundos, o comandante concordou com aquela voz. Mandou então parar as máquinas. “A correnteza”, pensou. Mas nada mais correspondia aos seus desejos. Ele percebeu que tudo estava errado e nada mais poderia ser feito. Foi quando escutou um estrondo que lhe pareceu definitivo. “Alcançar a terra ... Alcançar ... Meu Deus! Nada responde ... Está soçobrando ... O que está havendo ...?...”
- Vamos ter que sair! - gritou então. - Desçam as baleeiras! - ordenou. Vão!
... “O diário ... O diário ... Tenho que pegá-lo...”, pensava ainda o comandante, enquanto se afastava do comando de um timão que já não funcionava como controle. Quando passou pelo salão de recreio, tentando chegar a uma escada lateral, o fogo envolveu-o como um lençol em chamas.
- Comandante! O fogo! - gritou uma voz às suas costas, alertando-o do perigo.
... “Tenho que pegar os documentos do barco ... O manifesto de carga será a prova... Eles vão ver só ... Esses cretinos ... Tenho que conseguir ...”
... A água do rio estava gelada na altura de seus pés; mas em cima, na altura do torso, um pouco aquecida. O odor forte do querosene entrava em suas narinas e ele percebia, incomodado, aquela fuligem flutuando ao seu redor. Um profundo corte no braço esquerdo o impedia de nadar corretamente. Seu rosto estava queimado e ele ficou boiando em meio aos gritos de socorro e explosões que ainda aconteciam no Paes de Carvalho. Apesar de fracos, seus olhos ainda viam a embarcação soçobrando lentamente, em meio a uma espessa cortina de fumaça. Distanciava-se do barco, mas ainda via aqueles instantes finais. Uma fogueira no meio do rio e que, paulatina e melancolicamente, extinguia-se. Então, a água começou a ficar pesada para o seu corpo. Ele começou a respirar com dificuldade. As forças lhe faltavam, o cansaço e a dor exauriam as suas forças. Foi quando ele viu uma péla flutuando ao seu lado. Agarrou-se nela o máximo que pôde. Ofegava bastante pelo esforço despendido. O cheiro da borracha, por um instante, aliviou-lhe o desespero. “Não lembrava de estar transportando pélas”. Mas não aprofundou o pensamento. O que contava era continuar flutuando. Dominou a suprema vontade em desfalecer e se deixar afundar de vez. Seu corpo começou a tremer de frio. O sangue descia de seu gordo braço e misturava-se com as águas do Solimões. Sentiu que não ia aguentar por muito tempo. Resolveu que, assim que escorregasse daquela péla, se deixaria afundar. “Morreria”. Pensou então, com um carinho extremado, na família, nos filhos e na pequena Denise. O que pensariam os filhos mais velhos? Como viveriam todos após a sua morte? Escorregou então daquela péla. Porém, esforçou-se para não afundar; encheu os pulmões de ar. Mas logo soltou. Foi quando então aquele rio barrento começou a invadir a sua boca. Mas ele reagiu um pouco e levantou a cabeça. Talvez fosse a última vez. O rio passava fino e gelado pelas suas pernas. Na altura de seus olhos, mostrava-se espesso. Por um momento, sentiu-o e o viu como se fosse o látex escorrendo de uma seringueira. Naquele instante, percebeu que se encontrava bem distante do barco; da vida; de todos. Na linha do horizonte, ele também percebeu a sombra da floresta, testemunhando os atos inúteis de sua derradeira vida. Pela última vez, tentou olhar lá fora. “A vida!” ...
... Em sua cabeça começaram então a passar imagens do passado. Sua infância, a família reunida, sua vida toda. Vozes volteavam em sua cabeça. Risos; gestos; intenções. A água do Solimões começou a inundar o seu corpo. Entrava; entrava. Ele sufocava e debatia-se cansado. Lembrou-se do primeiro brinquedo da sua infância ... Um barco ...Viu-se lançando o pequeno barco no rio e vendo-o flutuar. “Deveria sobreviver por uns instantes mais”, pensou. Emergiu e segurou firme. Mas escorregou de volta. Viu o rosto de Helena. A jovem Helena, sua mulher. “Ela lhe sobreviveria”. Seus pulmões estouraram num esforço supremo. Seus olhos fecharam-se por entre aquelas águas. Ele submergiu lentamente e uma calma total o invadiu. A água daquele rio, que ele tanto navegou e amou, o envolveu e penetrou-lhe completamente. E veio então o silêncio. E, a escuridão total.
Capítulo XI
Euclides estava tomando uma cerveja, em um bar da cidade, quando ficou sabendo da tragédia do “vapor incendiado”. Imediatamente, seu faro de jornalista o levou a querer descobrir mais algumas coisas sobre a embarcação que afundara perto da ilha da Botija”.
- Como era o nome desse vapor? - perguntou ao homem que começara a relatar o ocorrido.
- Paes de Carvalho! - exclamou o homem.
O coração do jornalista disparou.
- E morreu muita gente, “doutô”! - continuou a relatar, exasperado, o homem.
Euclides não se conteve.
- Meu Deus! - desabafou, enquanto passava a mão pelo rosto lívido. - Faz poucos dias que cheguei aqui viajando nele - completou. Conheci toda a tripulação.
- Era o “gaiola” pilotado pelo comandante Cabral dos Anjos! - afirmou outro homem. - Eu conhecia muito esse comandante - continuou. Homem criterioso.
Todos que estavam no bar então se entreolharam imersos numa tristeza repentina.
- Como o senhor ficou sabendo? - perguntou Euclides, quebrando o silêncio - O Índio do Brasil aportou no Rodway alguns minutos atrás, trazendo os sobreviventes - disse o homem.
Ao escutar tudo isso, Euclides ficou extremamente chateado com o ocorrido, mas, ao mesmo tempo, matutando a possibilidade de ampliar o artigo que escrevia sobre a região. “Afinal de contas, uma coisa dessas não acontece todo dia”, pensou. Resolveu então que pegaria os relatos de alguns dos sobreviventes.
- Preciso encontrar essa gente para entrevistar - comentou.
- Ah! Então o senhor é jornalista? - perguntou o homem que aparecera contando a tragédia.
- Sou. E estou viajando pelo Amazonas e...
- Se o senhor quiser, posso levá-lo até à redação de alguns jornais da cidade - cortou o homem. E completou: - A revista Redenção vai entrevistar e fotografar, hoje à tarde, um sobrevivente que trabalhava no Paes de Carvalho.
- É bom saber disso - disse Euclides, satisfeito pela sorte que tivera ao encontrar aquele homem, que parecia saber de tudo sobre aquela cidade. - E onde fica a redação dessa revista? - indagou então.
- Aqui perto; na rua Barroso, número quatro - respondeu o homem. – Se o senhor quiser, podemos combinar uma hora, depois do almoço, para eu lhe apresentar ao senhor Clóvis Barbosa - completou solícito o homem.
- Quem é Clóvis Barbosa? - perguntou Euclides.
- É um dos donos dessa revista - respondeu o outro. - Ele vai ficar contente em saber que tem um jornalista do sul do país fazendo um trabalho jornalístico aqui, em Manaus, e que também pode divulgar esse assunto lá fora - observou. Às quatorze horas eu pego o senhor aqui neste bar, combinado?
- Combinado! - respondeu Euclides com um aceno. “Aproveitarei essa oportunidade”, pensou então. Homem acostumado às lides de um jornal, Euclides sabia que naquela tragédia havia muito a se explorar. Talvez um prolongamento inevitável, e já esperado, de toda uma situação histórica e econômica que também naufragara. “Tornara-se simbólico”, pensou ainda. E pensando em tudo isso, Euclides colocou o chapéu de volta na cabeça, pagou a conta e saiu para conhecer um pouco mais daquela cidade tão estranhamente atingida, como ficou sabendo, por uma série de tragédias acontecidas nos últimos tempos.
(...)
A pequena sala de redação da revista Redenção estava lotada. Um calor infernal tornava o ar quase irrespirável no recinto. Curiosos, autoridades e jornalistas queriam saber mais detalhes da tragédia. Euclides fora apresentado rapidamente a um dos donos da revista e mal iniciara a conversa com ele quando uma voz, saída da parte da frente da sala, pediu silêncio.
- Senhores! Senhores! Façamos silêncio, por favor! Vamos escutar o relato do nosso rapaz - quase que rosnou a voz.
Imediatamente o silêncio baixou sobre a sala. Com a fumaça de cigarrilhas e charutos impregnando o ar, todos se prostraram em suprema atenção. Euclides, como jornalista convidado, havia sido quase que empurrado e colocado em uma fila de cadeiras dispostas em semicírculo, por trás de uma enorme mesa colocada de frente para a plateia. Na cadeira, localizada bem ao centro da mesa, estava sentado o tal do sobrevivente que faria o relato da tragédia. Ladeando-o, os donos da revista. Em seguida, à direita e à esquerda, espalhavam-se algumas autoridades convidadas, perfazendo um total de onze cadeiras ocupadas. Euclides ficara sentado em uma dessas. O sobrevivente chamava-se Mário de Assis Costa e tinha vinte e um anos. Considerado herói por ajudar muita gente a escapar da morte, o rapaz trabalhava como praticante de leme do Paes de Carvalho. Era um jovem aparentemente como outro qualquer. A única diferença talvez estivesse nos músculos que sobressaíam de um corpo atarracado de caboclo. Tinha uma testa larga e orelhas de abano. Seu olhar era calmo e sua boca de grossos lábios determinados. Naquele momento, estava vestido com a roupa que costumava trabalhar e parecia, ele próprio, esperar pacientemente pelo que iria acontecer.
- Como vocês todos já devem estar sabendo - continuou o homem que pedira silêncio - convidamos o senhor Mário Costa à nossa redação, para que este corajoso herói de uma tragédia tão absurda nos relate, no calor ainda terrificante de sua memória, os fatos que ele, como testemunha e protagonista, viu desenrolarem-se na madrugada fatídica do dia vinte e dois passado, que estão galvanizando - neste momento, o homem puxou seu discurso do bolso do paletó -, “que estão galvanizando, inédita e intensamente” - continuou -, “as correntes, consternantes, de nossa sensibilidade. “Foi um quadro de flagícios supremos”, - tonitruava a voz no início de seu discurso inflamado - “em que o gênio do mal (enfático), na áspide dos seus caprichos macabros, utilizando-se da tolerância irrefletida de uns e do descuido inconsciente de outros (colérico) arquitetou mais uma dolente rediosca, mais uma luta desigual e furente, entre o homem e o mar ... No azar daquele diabril momento de apoteose ao pavor, estavam de amores os mais hórridos elementos de ... Uma sucessão, constante e caótica, que lançava as crepitações ensurdecedoras dos inflamáveis. Ao instante conturbado, fragoso e inenarrável do esgarrar (enfático), do alquebrar (mais enfático), do esborcinar (mais enfático ainda) do Paes de Carvalho ... Mas, nem tudo, no crepúsculo daquele entrosado espetáculo, empastou-se de esgazeamento submisso, ante o formidável sacrifício ... Na hora mais dorida da região do Camará, pesaram-se, ouro-fio, os apanágios alcandorados e fascinantes do heroísmo. E, entre todos os bravos, salientou-se a individualidade desartificiosa, consciente e resoluta do jovem Mário de Assis Costa. Este humilde praticante de leme, aqui presente ... (aplausos calorosos cortando o discurso). O discursante levantou os braços agradecendo e, entendendo que deveria parar naquele trecho e dar logo início ao relato do jovem herói, chamou de lado um sujeito que parecia trabalhar na redação da revista e sussurrou-lhe: “Pega este discurso e publica na íntegra e com uma foto do rapaz bem no meio da matéria!”
- Pois não, seu Clóvis! - disse o sujeito, enquanto recebia o pedaço de papel e saía correndo por um pequeno corredor lateral.
... - Quando o fogo aumentou - começou a relatar o praticante - a primeira coisa que passou pela minha cabeça foi salvar logo as crianças que estavam a bordo; não pensei na minha vida e nem na minha morte; tudo o que fiz foi tentar salvar aquela gente. Lembro-me bem de uma senhora que, depois fiquei sabendo, acabou perdendo o marido e os filhos na tragédia. Ela descia pelo cabo da baleeira; um de seus filhos ficou em cima, na proa. De longe eu via tudo. A mãe, desesperada, vendo seu filhinho ficar para trás; foi terrível! Peguei a criança e entreguei à mãe. E um salva-vidas. Acho que qualquer um faria aquilo. Procurei também afastar do fogo, que se alastrava perigosamente, um garoto; empregado do coronel Armindo de Rezende. Mas parece que esse menino desapareceu depois.
- Como foi a distribuição dos coletes salva-vidas? Destes para muita gente? - perguntou um dos jornalistas.
- Foi muito trabalhoso retirar e distribuir os coletes - respondeu. - Alguns foram logo atingidos pelas chamas - continuou. E havia muita confusão a bordo. Cedi um colete a uma senhora idosa. Mais tarde encontrei essa senhora junto à margem do rio. Um passageiro da terceira classe estava muito aflito e eu entreguei um também. E outros.
- E como se portou o comandante durante todo o sinistro? - perguntou o dono da revista.
- Estava calmo; e até quando pude ver, ele ficou procurando dar ordens e entrar em contato com seus comandados através do telégrafo. Em determinado momento, nós “era” em número de cinco reunidos. O comandante, o prático de nome Palheta, o mestre Salles, o despenseiro Garcia e eu. Foi quando ele desapareceu por trás de uma caixa. Acho que foi ali, naquele momento, que ele morreu. Tinha muitas chamas cercando aquele trecho. Seria impossível passar para a proa. Talvez tenha se jogado na água. Não sei. Fiquei olhando; procurando ver o que ele ia fazer e, quando me voltei para indagar aos meus companheiros, percebi que também havia ficado só. As chamas estavam fortes e havia muita fumaça. O mestre caíra na água e o Palheta também sumira do local onde se encontrava. O fogo e o calor eram intensos, como eu disse.
- Soubemos que você foi o último a abandonar o vapor; conta, como foi isso e o que aconteceu depois? - perguntou outro jornalista.
- Eu estava na proa quando o navio começou a afundar. Após uma explosão terrível, ele começou a baquear. Joguei o colete, pulei e nadei atrás. Aí, as chamas que iluminavam o rio foram sumindo, e o que restou foi só a escuridão. Um vento frio soprava forte e fiquei escutando os gritos de algumas pessoas. Enquanto nadava, encontrei o passageiro da terceira classe que havia recebido o colete. Estava muito nervoso e sem saber bem para onde ir. Levei o homem até um pedaço de madeira que flutuava. Ele até comentou que se nenhum bicho o pegasse ele estaria salvo. Acho que passei umas duas horas naquelas águas; até uma canoa aparecer e me recolher. Dona Thereza Tapajós, aquela senhora que coloquei o filhinho no colo. No salva-vidas. Estava fora de si, coitada. Perdera a criança durante a longa travessia. Escapulira de suas mãos e afundara na escuridão. Ela perdeu a criança e não ... Depois, na margem, eu encontrei o cadáver dessa criança. Foi triste. O encontro da mãe com a criança morta foi a cena que mais me impressionou nessa tragédia toda.
- Sim, muito triste - comentou o jornalista, olhando na direção de um auditório boquiaberto por tal relato. - Mas o que houve depois, com o dia aparecendo? E os outros sobreviventes? - perguntou em seguida.
- Estávamos marginando o rio quando vimos uma baleeira passar. Nela estavam dois foguistas, três mulheres e quatro crianças. Um pouco mais abaixo, encontramos um carvoeiro e um maquinista que eu pensava até que “tava” morto. Mais adiante, vimos um taifeiro completamente nu, agarrado numas canaranas. Puxamos ele para a nossa canoa. Depois, paramos a canoa e continuamos a procurar, a pé, pelas margens do rio. Algumas pessoas que conseguiram se salvar estavam sendo atendidas por uma família que residia ali, no Camará. Eles logo procuraram nos levar para o barracão onde moravam. Já eram umas sete e meia da manhã. Muita gente “tava” desaparecida no rio. Lá pelas nove horas, apareceram duas canoas com dois passageiros e uma criança. E depois, outra. Essa vinha com o cadáver do nosso imediato. Ele ainda estava com o salva-vidas; mas, morto. Depois de um tempo de descanso, resolvemos procurar, eu, o maquinista Pedro e uns foguistas, pelo resto do pessoal. Pensamos que talvez estivessem na outra margem do rio. Na travessia, encontramos vários cadáveres de crianças boiando, que puxamos para dentro do barco. Aí descemos o rio. Um temporal desabou e nós voltamos. Depois, a tripulação do vapor Envira nos avistou e nos resgatou. E o Índio do Brasil. Enfim, foi assim.
Neste momento, cercado pelo silêncio de todos naquela sala, o marinheiro levantou-se, dando por encerrada a entrevista. Houve uma sessão de fotos a um canto da sala e os jornalistas e autoridades ali presentes retomaram seus afazeres diários. Euclides, que havia anotado quase tudo o que o sobrevivente dissera, foi até onde os donos dos jornais estavam.
- Anotastes tudo? - perguntou Clóvis.
- É um rico material a ser divulgado - respondeu Euclides.
- Existe uma senhora que também vai nos revelar aspectos da tragédia do Paes de Carvalho - disse o jornalista. - Se quiseres? - prontificou-se.
- Ah, sim! - exclamou Euclides. - É sempre bom escutar outro sobrevivente - observou.
- Estou indo agora até onde essa pessoa mora - disse o dono da revista.
- Ótimo! - exclamou satisfeito Euclides.
- No caminho, podemos conversar sobre o teu trabalho em geral e sobre o Rio de Janeiro em particular - observou o jornalista. - Adoro aquela terra! - exclamou, enquanto saíam.
- O nome da senhora é Alexandrina Rodrigues Neiva e é mãe do Procurador e Fiscal da Fazenda, senhor Júlio Lima - explicava o jornalista, enquanto batia palmas na frente da casa. - Me parece que ela tem algumas queixas a fazer sobre essa lamentável viagem - continuou.
Euclides escutava tudo o que o outro lhe falava e ficava pensando nas dúvidas que pairavam na cabeça de todos. Parecia claro que o acidente poderia ter sido evitado, que o incêndio talvez pudesse ter sido contido a tempo e a tripulação não tivesse cometido tantos erros de avaliação. Mas o que comentavam na cidade, sobre a tragédia, só poderia ser elucidado com as perguntas que eles, jornalistas, pudessem formular aos sobreviventes. E mais ainda, com as respostas que essas pessoas pudessem lhes transmitir. O resto, então, poderia ser esclarecido com o tempo. Ele, como jornalista do sul do país em visita àquela cidade, ficaria apenas como espectador privilegiado. Mas, em seu íntimo, já desconfiava que aquela tragédia colocava mais um ponto de interrogação sobre o futuro da navegação, daquele tipo de barco, por aqueles rios amazônicos.
- Mandei avisar antes e a senhora Alexandrina deve estar nos esperando - disse o jornalista, dirigindo-se a um empregado da casa que viera abrir a porta.
A casa era alta, com um expressivo frontão todo rebuscado, formando um escudo arquitetônico especial. Dois janelões encimados, por dois pequenos frontões, imitavam o estilo rebuscado do principal. Uma enorme porta lateral expunha a face total da casa. Quando a porta foi aberta, um pequeno lance de escada em madeira apresentou-se de imediato. A senhora Alexandrina estava sentada na sala, que ficava nos fundos de um pequeno corredor. Sua imagem inicial era a de uma mulher franzina, com mais de sessenta anos e um olhar impassível e determinado, que só uma velha senhora carrega. Seu corpo, apesar de magro, deixava transparecer uma força e energia que talvez fosse a explicação de como sobrevivera àquela horrível tragédia.
- Uma boa tarde, dona Alexandrina! - cumprimentou o dono da revista. - Sou o jornalista da revista Redenção e...
- Sentem-se, meus filhos - cortou dona Alexandrina, educadamente. - Estou à disposição de sua revista - continuou. Ainda tenho, bem viva na memória, a cena horrorosa que assisti.
- Este senhor aqui é um jornalista do sul - disse o dono da revista, apresentando Euclides.
- Boa tarde, minha senhora - cumprimentou Euclides.
- Sentem-se! Sentem-se! - insistiu a velha senhora. - Querem tomar um licor? - perguntou.
- Ah! Seria ótimo - disse o dono da revista.
- Muito obrigado - completou Euclides.
- A senhora dormia na hora do sinistro, não? – perguntou Clóvis, procurando abrir logo a entrevista, enquanto se aboletava numa enorme cadeira de balanço.
- Não! Qual nada - respondeu dona Alexandrina, já fazendo um sinal para o empregado providenciar o licor. - Apesar do frio que fazia, eu estava sentindo muito calor no camarote e não conseguia dormir - continuou. Conversava com uma amiga que viajava comigo quando escutei, não posso precisar a hora, uma confusão de gritos vindos do convés da terceira classe. Como lá estavam muitas dezenas de seringueiros, pensei que se tratasse de alguma discussão, tão comum entre eles. Mas, aí ouvi algo mais sério, isto é, a palavra “incêndio” misturada com gritos de aflição. Chamei então pela minha companheira ... Olhem, o licor chegou! ... Chamei então pela minha companheira, vesti-me rapidamente e saí da camarinha. Chegando ao corredor, verifiquei que o navio estava sendo devorado por um violento incêndio. O fogo tomava proporções assustadoras; as labaredas, vindas de baixo, atingiam as redes armadas na popa do convés de cima. A situação era insustentável. Aproximei-me da amurada e olhei para o rio. Havia grande número de passageiros procurando manter-se à flor d’água. Lutando uns contra os outros, na ânsia da salvação. Foi horrível! Mães agarravam-se aos filhos, procurando tê-los junto a si naquele último instante de vida. Um horror, meus filhos, um horror!
- E a senhora, o que fez para se salvar? - perguntou Euclides, vivamente interessado na história.
- Deixei-me escorregar pelo costado do navio, apoiada em um cabo. - Ao chegar à água, encontrei logo um cadáver de criança; impressionada com aquilo, fiquei algum tempo sem fazer coisa alguma – disse, o olhar estarrecido. Segurava em um portaló que estava aberto. Como ouvisse alguém dizer que a margem estava perto, tomei coragem e afastei-me do navio. Nadei, meus filhos! Em pé, meu filho! Com um vigor que eu mesma me admiro. Havia nadado uns trinta metros quando avistei uma embarcação que se aproximava para me salvar. Nessa ocasião, vi uma senhora que se debatia, toda agoniada, na água. Como eu ainda pudesse sustentar-me nadando por mais algum tempo, pedi ao pessoal do barco que fosse socorrer primeiro aquela senhora, que estava em situação mais crítica que a minha. Eles assim o fizeram. E como me pareceu longo esse tempo que precedeu à minha salvação. Senti-me desfalecer muitas vezes, porém, ainda tinha vontade de viver. Lembrava-me dos meus filhos e netos. Não queria ainda renunciar à vida. E, num último esforço, invocando a proteção de Deus, senti que uma nova força se insinuava em todo o meu ser, força que fez com que eu, esperançosamente, aguardasse pela salvação. Vou lhe dizer mais uma coisa. Eu nunca esquecerei uma cena que vi. Logo no começo do incêndio do Paes de Carvalho. Vocês têm que registrar isso! Um dos tripulantes cortou a corda que prendia um dos cavalos, que iam a bordo do vapor. Eu vi! E se atirou no rio montado nele. Vi o danado desaparecer em cima daquele cavalo.
- E sobre o comandante, a senhora tem alguma coisa a dizer? - perguntou Euclides.
- Olha, meu filho, acho que ele se jogou no rio - respondeu, a mulher, secamente. - Não acho que ele tenha morrido no incêndio, não - afirmou.
Os dois homens se entreolharam e ficaram em silêncio.
- Bem, minha senhora, a direção da revista agradece o seu depoimento - disse Clóvis, saindo de suas dúvidas e dando por encerrada a entrevista.
- Quando vai sair isso? - perguntou a mulher.
- Em breve - respondeu Clóvis.
- Espero que o meu relato sirva para dar um basta na irresponsabilidade geral que vem acontecendo, ultimamente, nesses vapores - disse dona Alexandrina, revoltada. - É um absurdo o transporte das mercadorias e de pessoas - fez observar, enquanto se despedia dos dois homens. Mas, bebam o licor! Não querem mais?
FIM